segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Artimanha de um vendedor

OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS ?




Raimundo, habitualmente extrovertido e de uma alegria contagiante, andava arredio e triste. Não conseguia dissimular as preocupações. Casara-se, há pouco mais de três anos, com Marianinha, a quem conhecera ha seis anos, por ocasião da coroação dela como “Rainha dos Comerciários”, após uma eleição das mais acirradas. Foi amor à primeira vista. Do amor ao casamento, pouco mais de dois anos decorreram.
Raimundo, recentemente, passara a morar na periferia da cidade. Ocupava uma casa espaçosa; bem melhor do que a morada anterior, um acanhado apartamento de sala, cozinha e dois quartos. Na nova casa tinha um bom quintal com área de lazer para as crianças; um pequeno pomar com muita laranja, limões, goiabas vermelhinhas e sadias, além de outras frutas nativas; e uma excelente área para horta e jardim bem aproveitada por Marianinha.
A inconveniência era que a nova casa localizava-se um pouco distante do seu trabalho. Para agilizar a sua movimentação viu-se obrigado a comprar uma bicicleta; carro ou moto não eram para o seu bolso. O pagamento da bicicleta foi dividido em uma pequena entrada e prestações a perder de vista.
Preocupando-se em aprimorar o nível cultural matriculou-se no curso supletivo do Colégio Gertrudes.
As despesas com o pagamento de aluguel; a compra do seu meio de transporte e o custo do supletivo refletiam-se no orçamento doméstico. Afinal a renda do Raimundo estava restrita à remuneração do emprego na “Casa Imperial” : salário fíxo e um percentual variável sobre as vendas e, eventualmente, uma comissão incentivo, tipo prêmio. Isso acontecia em momentos de depressão econômica ou para atender a necessidade de maior aporte de recursos para reforço das disponibilidades de caixa da empresa ou particularmente do seu proprietário.
A “Casa Imperial”, onde Raimundo trabalhava, era o estabelecimento comercial de maior prestígio na região. Estoque realmente completo.
Manoel Pereira de Almeida Assumpção, o Manoel Português, o proprietário. Iniciara-se na região como mascate até fixar-se definitivamente naquela acolhedora cidade. Isso há mais de cinqüenta anos. Muito amigo de Raimundo fôra o padrinho de casamento presenteando o casal com uma viagem de lua de mel no litoral espirito-santense. Uma semana de sonho. . . Inesquecível para Raimundo e Marianinha.
Muito rígido na administração do seu negócio, o que explicava o seu sucesso, o Português já avisara a Raimundo que a antecipação na saída à tarde, para o curso supletivo, deveria ser compensada na parte da manhã. Raimundo passou a ter a obrigação de chegar ao trabalho meia hora antes do início do expediente - isso no mínimo , como enfatizava o Português. Deveria fazer a limpeza e dispor as mercadorias nas prateleiras e nas vitrines de modo atraente para a clientela.
Devo lhes dizer que Raimundo trabalhava para Manoel há muitos anos. Foi admitido ainda uma criança para ajudar a mãe no sustento da casa. A renda da mãe, modesta lavadeira, era insuficiente ao sustento da família, muito numerosa. O pai de Raimundo, um homem íntegro e trabalhador, muito estimado por todos, morrera vítima de disparo casual de arma de fogo.
Decorria o mês de fevereiro. Havia muita esperança no comércio de que o marasmo existente fosse interrompido durante os festejos do mês de março, mês de São José, santo padroeiro, mesmo que de forma passageira,
Essa expectativa era partilhada pelo vigário Silveira por necessitar a igreja de um cabedal maior de recursos para obras sociais, tais como o lactário, para o leite dos velhos e das crianças; a sopa para aqueles pobres e miseráveis sem nenhuma renda. . .
No mês de março sucediam-se os eventos : quermesses, disputas esportivas, torneios literários . . . culminando no dia 19, dia do padroeiro. Houve época em que os festejos eram perturbados pelas chuvas pesadas e intensas que caiam na região - as chamadas águas de março. Há muitos anos, porém, isso não acontecia. A seca era brava.
Chegara, enfim, o tão esperado mês de março.
. . . Porém, quanta decepção !
O fluxo de gente - para tristeza do comércio e do padre Silveira - foi muito aquém do ocorrido em anos recentes. A consequência : Mínima a reação nas vendas do comércio e inexpressivas as espórtulas para as obras sociais do padre Silveira.
A cabeça de Raimundo andava à mil, na busca de fórmulas mercadológicas que resultassem em aumento de vendas. Precisava dramaticamente aumentar seus rendimentos.
Num fim de tarde, Raimundo anteviu a oportunidade de um bom negócio na pessoa de Libório que acabava de chegar.
Libório, um tipo de características definidas : alto, esguio, bigodinhos finos sempre bem aparados, olhos espertos e um sorriso permanente dependurado nos lábios. Toda a cidade conhecia Libório e suas atividades de agiota sem alma e sem coração. Gostava de levar vantagens sempre, em tudo e a todos os momentos. Não importavam os meios.
Atendido por Raimundo, Libório disse-lhe que desejava comprar roupas - camisa, gravata, meias - para um casamento na fazenda do Coronel Limoeiro. Seria um dos padrinhos.
Solícitamente, Raimundo passou a mostrar o que tinha de melhor, à altura do requintado cliente sugerindo-lhe um enxoval completo, inclusive um terno de fino tropical inglês recebido naquela semana. Coisa fina, de uma grande confecção do Rio de Janeiro.
Libório não se entusiasmou com a sugestão. – Muitos ternos já tinha.
Raimundo insistiu para que Libório pelo menos examinasse a roupa de caimento e corte impecáveis.
Tal foi a insistência de Raimundo que Libório se dispôs a vestir o tão exaltado e elogiado fato. Dirigiu-se, então, ao closet, retornando elegantemente envergando a roupa. Raimundo derramou-se em elogios. Insistiu para que Libório verificasse o corte moderno dos bolsos, amplos e profundos, arquivo seguro para documentos, dinheiro e objetos outros. Sem disfarçar o seu aborrecimento Libório aquiesceu levando as mãos aos bolsos. Neste exato momento Raimundo notou uma reação no rosto de Libório, imperceptível quase, seguida de um certo descontrole. Nada mais falou. Apressadamente, Libório voltou ao closet e ao retornar, sem mais delongas, disse a Raimundo, que se convencera da conveniência da compra pedindo-lhe, então, informar o valor para pronto pagamento, e coisa inédita, sem regatear no preço, e dispensando a gentileza da entrega em sua casa.

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Já em casa Libório desfez atabalhoadamente o embrulho indo pressurosamente aos bolsos. Nada encontrou . . .
Raimundo, ao embrulhar a roupa, tal qual um prestidigitador exímio, retirara a ‘ isca ’, seu trunfo para a venda: um relógio de ouro.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Exercício de meditação

A GOTA. . .



A gota é um tema . . .
De fertilidade; ensopa a terra possuindo-a e penetrando-a até à semente que guarda em suas entranhas, fazendo-a germinar, crescer e multiplicar-se;
De amor à vida; sob a forma de uma vacina miraculosa, protege o corpinho frágil contra o ataque virótico, mutilante, irreversível;
De vida; na volúpia dos corpos que se encontram em homenagem ao amor; na doce entrega consentida;
Maçante; no pinga – pinga que se infiltra na fresta do forro ensopando o tapete; martelando os ouvidos de sua vítima insone com o tilintar de sua precipitação;
De alegria; na lágrima incontida pela vitória alcançada, buscada com empenho e energia;
De tristeza; na lágrima derramada na dor pela perda sentida no momento final de uma existência;
De decisão; nos momentos em que precipita uma ação . . . “ foi a última gota”;
De desprezo; a um fato ou a alguém . . . “uma gota d’água no oceano”;
De apelo comercial; em “A Gota Mágica”;
De destruição; na união de muitas gotas, transformadas em corrente poderosa, enxurrada enfurecida, carregando na sua fúria veículos, casas, barracos, animais . . .
De alívio e reconforto; ao saciar a sede dos homens e dos animais;
De repouso; na chuveirada que higieniza e refresca;
De grandeza; na imensidão dos rios e dos oceanos, conjugação de milhões, bilhões, trilhões. . . de gotas;
De terror; na tempestade consequente de milhares de gotas enlouquecidas, açoitadas por ventos dominadores;
De inspiração poética; “destila gotas de orvalho a folha verde inclinada . . . “
(Gonçalves Dias, o grande artista do verbo, em Séguier).