sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

HARPA SEM CORDAS

(Pinceladas quase autobiográficas de um desconhecido)

(Ao fluente cronista que se assina ADAMASTOR com a minha admiração)

(Gonçalves da Costa)


Desde que, em criança abolí o uso de camisolas e aprendi a cortar as unhas com tesoura, sempre fui um sujeito cem por cento legal. Comedido, simétrico. Em nada parecido com areia de fundo de rio. Exemplifico. Ao tossir, sempre procurei fazê-lo no mesmo diapasão, com equilibrio, procurando evitar aquele regougo estridente, escandalizante, que certos velhos asmáticos reservam infalivelmente como remate a um acesso de tosse. E no andar, quantas e quantas vezes pisei numa poça d’água, ou num prego, para não dar um passo mais curto ou mais avantajado que os outros.
Certo dia, porém, numa delegacia de polícia qualquer, não sei onde nem quando, fui tomar por termo o depoimento de um cabo de polícia. Vi logo que se tratava de um militar genuinamente louco. E qualquer pessoa, mesmo desconhecedora das páginas do Dr. Neves Manta sobre o alcoolismo, ao sentir o bafo do homenzinho concluiria logo que ele estava bêbado.
Presenciara ele, na véspera, quando um homem estrangulara a esposa, apenas porque esta, num momento de distração, tinha esmagado com o pé esquerdo um sapo criado em casa. O depoimento foi um rio de disparates, que fui canalizando para o papel. Mentiras deslavadas. Disse que o assassino, por falta de arma adequada, arrancara o próprio coração, desferindo com ele uma pancada fulminante na vítima, pormenorizando ainda que o Embaixador do Japão se acha presente e que assistira tudo, impassível, como que numa convivência tácita, fabricando canoinhas de papel.
A certa altura o militar interrompeu-se, e começou a sacudir violentamente a cabeça. Notando a minha estupefação, explicou estar tentando desprender, de um cantinho da lembrança, uma circunstância agravante do crime que lá se achava presa num cipoal . . . Arrogando autoridade, eu disse, com voz grossa, que o depoimento estava completo, tomando o depoente, então, a sua posição anterior, vertical e mais ou menos imóvel.
Vendo que não convinha dizer mais nada, ele se apressou em assinar o papel, como a estampar um sinete em suas mentiras, para o que me arrebatou das mãos a minha caneta “Parker”, novinha em folha. Com um punho que rivalizava um monte de chumbo, escreveu em letras enormes - “José Patrício”, e, desastradamente, como completivo, tentou dar um traço horizontal abaixo do nome. Catástrofe ! Ao fazê-lo quebrou a pena e rasgou o papel, depois do que, resplandescente, olhando para a caneta mutilada, bradou, num tom que era um grito de vitória : “Desconfia, seriema ! “.
A maneira como o militar depôs, o fato de confundir ele a caneta com uma ave pernalta, e ainda em vista dos passos de frevo que saiu praticando, ao afastar-se, mesmo sem música, tudo aquilo me avassalou o espírito, entusiasmando-me, a ponto de não deixar pedra sobre pedra . . . Numa fração de segundo me vi despido dos meus hábitos antigos, das minhas decisões retilíneas, do meu antigo eu, afinal. Imediatamente, com mãos ofegantes, procurei todos os meus dicionários, até os escritos em aramaico, e deles arranquei as folhas que continham as palavras - lógica, elaboração, raciocínio, dedução etc. E os livros “Lógica”, de Condillac, “Lógica”, de Balames, e vários outros, dei-os ao primeiro vendedor de pirulitos que passou na estrada. Retirei do bolso a carteira de identidade, na qual mudei a data do meu nascimento para o Natal de 1870. Tanto bastou para que logo me visse ao lado de D. Pedro II, nas matas da Tijuca, munido de uma espingarda descomunal, caçando trocazes. Sua Majestade procurava então curar-se de uma dor de cabeça causada por um de seus ministros, o mais gordo. De mal humorado que se achava, súbito o Imperador deu uma gargalhada, apenas por ter, com um tiro balofo, abatido nove trocazes luminosas. Foi então que o meu ilustre companheiro de caçada, apoiando uma folha de papel nas minhas costas, escreveu o verso – “Não maldigo o rigor da iníqua sorte “, reservando o resto do soneto para escrever mais tarde, depois que se verificassem sérios acontecimentos políticos no País. Despendido-me de sua Majestade, que salomônicamente partiu ao meio o produto da caçada e me entregou a minha parte (Salomão não chegou a partir ao meio a criança), sai andando no tempo, passando pela Serra dos Órgãos e pelo Pico do Caparaó, e, já nas terras de Minas, graças a minha proverbial indiscrição, consegui evitar uma catástrofe de resultados imprevisíveis . É que, aproximando-me sem ser visto, e dando um grito vulcânico, evitei que um grande chefe de Estado atirasse carne picada aos seus canários numa quarta feira de cinzas.
Tornei-me um cavaleiro andante. Não de vistas estreitas como o Dom Quixote de Cervantes. Uma individualidade consentânea com a época. Que disse eu ? Época ? Penitencio-me. Época para mim, é uma entidade que nem mesmo em abstrato existe. Às vezes fico ao lado da estrada, cheio de fé e de esperança, esperando a passagem do já citado Rei Salomão, ou de Napoleão, ou de Alcebíades, o que mandou cortar a cauda do seu cão de estimação, que latia fazendo “ão, ão, ão”. E se vejo uma fogueira, atiro-me logo a ela, e vou procurar entre as brasas a carne tostada de Giorando Bruno, ou de Joana Dárc, ou do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, o qual, ao que tudo indica, não teve outra sorte . . .
Até logo ventos do meio dia. Deixo-os em paz, agora, porque estou escrevendo de pé, debaixo da ponte, e porque o relógio que tomei com café pela manhã está dando horas no meu estômago. Vou procurar para o meu almoço uns gafanhotos, como fazia João Batista,o santo Precursor, que conversava coisas divinas com o futuro e cuja cabeça mais tarde foi vista dentro de um prato.