terça-feira, 26 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

MELHORES MOMENTOS


• As areias desta rua guardam cantigas do sol (Harpa Sem Cordas - Zebedeu)
• A estrada sob as amoras, um solo todo de lã (Revisão)
• Gotas de sangue vertido desabrocharão em músicas e chamas (Eles Estão no Futuro)
• A hora convulsa que passa é uma insensata, uma louca . . . (Fuga)
• Os dias caminham lentos / para o ciclo das auroras (Cântico)
• Cai, gota a gota, o leite confortante, sobre a paisagem lírica (Húmus)
• Vazia, se avizinha a madrugada (Procura)
• Ver a estrela dos tenazes. Não lastimar nem sorrir (Esparsas)
• Entre guerras e entre pazes, não ser notado . . . e existir (Esparsas)
• Como a saudade diviniza o que já não existe (Página Íntima)
• Caminhos de músicas, estradas de flores, roteiros resplandecentes . . . (Harpa sem Cordas - Tabor)
• Até logo ventos do meio dia. Deixo-os em paz, agora, porque estou escrevendo de pé, debaixo da ponte, e porque o relógio que tomei com café pela manhã está dando horas no meu estômago (Harpa sem Cordas – Pinceladas quase autobiográficas de um desconhecido)
• Ei-lo andando, andando . . . Todos os anjos do luar lhe vêem entornar paisagens e músicas na mente, ternura chove sobre o seu coração (Harpa – Iluminado)
• A moça da estrada - sonâmbula dos cabelos virgens – caminha de mãos estendidas, e sobre elas pousam aves de luz, egressas da madrugada (Exercício)
• Os ventos selvagens se contêm nos limites da morte, e o momento ficou parado, encolhido nos recessos das rosas (Exercício)
• As mãos têm leveza de séculos e o espaço, perfurado, deixa escorrer nitrogênio misturado com sentimentalismo (Exercício)
• Uma neblina suave, feita de músicas daquele céu, vai borrifando e purificando as nossas almas (Harpa sem Cordas)
• Ao fecharmos os olhos, ouvimos logo um cântico leve, envolvente. É a voz do homem feliz, o que canta sem camisa . . . (Harpa sem Cordas)
• Se quiserem fugir por momentos do mundo real, desçam as cortinas dos olhos, lavem primeiro com sabão de rosas os cinco sentidos . . . (Harpa se Cordas)
• Os passos ficam na poeira dormente da tarde (Tema)
• E a noite me estende as suas fronteiras como uma passagem de cânticos . . . (Tema)
• Me sinto um viajor solitário, perdido na treva, perdido na luz, no alto da montanha, de onde se irradiam todos os destinos . . . (Tema)
• Os ventos loucos conduzem perfumes (Tema)
• Os ventos são temas imperecíveis, em cujas asas se perderam os aedos antigos (Tema)
• A noite arrasta o poeta. O luar, descendo, é o mesmo fluido imponderável que vem vertendo o delírio das almas eleitas , através de séculos (A clareira da Floresta)
• As rosas com certeza foram convidadas para perfumar o ambiente, e também cantarão, pois cada corola é uma boca divina mergulhada em músicas . . . (A clareira da Floresta)
• Os ventos e as nuvens, agora, se acham presos na caverna dos grifos de asa gelada (A clareira da Floresta)
• E o poeta segue. Para trás ficam almas de luz e almas de sombra ( A clareira da Floresta)
• Pássaros, cujo canto é embalo e norte, ressurgiram dos mortos, de improviso, e o vento irmão do luar varreu a morte, - poeira do transitório paraíso ( Soneto)
• Vão andarilhos buscando itinerários divinos, não sabem onde nem quando a aurora envolve os destinos . . . ( Cântico )
• A hora é o imortal continente sem relógios, sem fronteira (Cântico)
• A tempestade, distribuindo sustos, uma noite do século me aviva. (Depósito)
• O crime também é uma arte, conduz a celebridade . . . Miguel Ângelo, Homero, Dante, assim como Nero, Judas, Satã, foram artistas, embora trilhando caminhos diversos (Exercício n.º 2)
• Tristezas escorrem pelo chão, vão misturar-se com as ervas pisadas, porque rastros nervosos procuram a bela sonâmbula, por céus e terras a procuram (Exercício)
• Sigamos, contritos mais intrépidos. Deixemos para trás as pirâmides do desalente, as planícies do cotidiano, os vales do talvez . . . (Exercício)
• Os cavalheiros do Santo Graal, os guerreiros de Salladino, passavam cintilando nas planícies eternas, rápidos, perseguindo relâmpagos (Harpa sem Cordas)
• Partir, partir. Mas para que partir ? (Tríduo)
• O passado sempre volta, no seu vestido de espelhos (Reflexo)
• Transpõe alamedas calmas, à luz mortiça da estrela (Reflexo)
• Rosais de embevecimento tornavam a área infinita (Reflexo)
• Sempre a música distante a insinuar devaneios . . . (Canção Leve)
• A morte, embora faminta, sempre tem olhos escassos (Canção Leve)
• Ninfas vestidas de arco – íris cantam nos bosques alheios (Canção Leve)
• Arderei em mil fogueiras, serei vale, asfalto, rosa (Cântico)
• Desço os degraus do mistério, sobem outras luzes, já . . . (Cântico)
• Festa de luzes e tintas, cala vento ermo, não fales (Viagem)
• Sombras ariscas, famintas, buscam comida nos vales (Viagem)
• Corsários de fogo assaltam a sensibilidade, e se transformam em hinos, que se estrelam como barcos pelo grande oceano (Aparas)
• Quando a alma voeja entre pétalas de solidão, em recinto santificante, suas asas tocam as da Poesia , e do contato mágico emergem mundos, panoramas, novas asas, aparecem figuras de acalanto com as mãos estendidas para enxugarem lágrimas . . . (Aparas)
• Trapos de nuvens corriam pelo azul, como receosas de serem tragados pela luz ! ( O Peregrino)
• Desenrolando o seu painel de sombras, a noite vinha caindo, magoada e silenciosa ( O Peregrino)
• Há, entre montanhas, um lugar feito de dias e de noites, chamado Sítio de Fênix. Nos seus jardins as flores da vida sobrepujam as flores da morte. (Volta do Imparcial)
• O Sítio de Fênix não tem comunicações com o mundo exterior. Solitário, faz lembrar aquele subterrâneo que, segundo Vítor Hugo, Caim fez construir, em vão, na tentativa de fugir ao olho da Divina Providência (Volta do Imparcial)
• O salto conduz à estrela. Na luz a glória cintila ( Bailarina)
• A luz, que delira e inocula delírios, sublima-se, adquire força, condensa-se em céu (Aparas)
• . . . punhais do teu corpo feriram o lago triste. . . (Canção)
• A noite te envolve a fronte, noite – loucura estrelada, e nos teus braços em chamas colherei a madrugada (Canção)

Gonçalves da Costa

Comentário

Duas obras de Gonçalves da Costa encerram esta retrospectiva. Outros trabalhos do poeta, publicados em jornais de Minas Gerais e de outros estados, certamente existem. A maioria desses jornais - talvez a totalidade - não mais circulam e, na ótica do colunista, não foram os seus arquivos preservados. Para os leitores que gostam de poesia e admiram a obra de Gonçalves da Costa, apresentamos “Tríduo” e “Viagem”.

José Geraldo Leal
Rua Rufino da Rocha - 64
35350 000 - Raul Soares (MG)


Tríduo

O desespero tem as suas flores . . .
No chão propício germinou, cresceu.
É o delírio de vozes, luzes, cores,
disfarce para os ídolos de breu.


Estorcem-se, contorcem-se, nas ânsias,
os loucos embebidos do elixir . . .
Outras distâncias. Para que distâncias ?
Partir, partir. Mas para que partir ?


Agora, um mágico, no mundo externo,
Transforma numa rosa cada inferno,
Cai-lhe das mãos a glória, tudo é céu . . .


Mas a invisível roda esmaga, esmaga.
Amanhã, um crepúsculo, uma chaga,
células mortas se arrastando ao leu.

- x -

Viagem

No pensamento em vigília
o anjo, coroado de vozes,
se levanta, a estrela brilha
sobre os abismos ferozes.


Leve harmonia, floresce
- vegetação sobre o altar
as palavras são a messe
nas planícies do Cantar.


Festa de luzes e tintas.
Cala vento ermo, não fales,
Sombras ariscas, famintas,
Buscam comida nos vales.

Agora, a paz sobre os ombros,
traz a Escada de Jacó . . .
Irei além dos escombros,
Sobre as vertentes do Só . . .

Gonçalves da Costa

Comentário


Itamar Lopes, eficiente servidor da agência dos correios de Raul Soares, dando prosseguimento ao brilhante trabalho do pai na referida repartição - o nosso saudoso amigo Itagiba Lopes -, é também um admirador de Gonçalves da Costa e de sua obra. Privou da amizade do poeta. Em um setembro dos anos 80 o poeta presenteou Itamar com o trabalho por ele intitulado “Tristes” , um conjunto de trovas. É um trabalho inédito do poeta que graças à gentileza de Itamar lançamos nesta coletânea.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 000 - Raul Soares (MG)


TRISTES


Ninguém engole uma argola,
também não há quem engula
um paletó com a gola,
por maior que seja a gula.

#

Lugar bem lindo, tão alto,
mas nem rosa nem jasmim . . .
Eu quis fugir dei um salto,
e caí dentro de mim.

#

O assassino ao ser ouvido,
diz com o respeito devido,
que a sua arma era de espuma,
ou não tinha arma nenhuma . . .

#

Nem idiomas nem dialetos
convencionais . . . Não convinha
o traficante de insetos
aos proprietários da vinha.

#

Se manténs muitas mulheres,
e vês muitas pelas ruas
na área dos malmequeres,
algumas delas são tuas.

#

Por mais que a gente se insule,
sempre fala, sempre diz,
ás vezes até de um bule
goteja a frase feliz . . .

#

Tenho dois laboratórios
na rua dos Alcaçuzes,
num deles fabrico sombras,
e no outro fabrico luzes.

#

As ruas pretas e brancas
passam junto ao meu nariz,
sempre que ocorre um desastre
eu escapo por um triz

#

Andas dizendo que eu disse,
mas não afirmo que disse,
pois vivo aguando os canteiros
da minha eterna doidice.

#

Sou hoje de poucas falas,
acho que tudo é tolice,
e que apenas vale a pena
olhar os olhos de Alice.

=

Gonçalves da Costa

Comentário

A década de 50 do século passado foi aparentemente a mais produtiva do poeta. “ BAILARINA” foi um dos sonetos publicados.
Inspiração, imaginação e fantasia na sua elaboração.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 000-Raul Soares (MG)


BAILARINA


O salto conduz à estrela,
na luz a glória cintila.
Loucura santa ! Contê-la
é a faina da hora tranqüila.

Vitória - régia em volteios,
ninfas de selvas e empíreo,
céu de clarões e gorjeios,
Lírio nos espaços, lírio . . .

A arte divina, parece,
é amargurada procura.
Embalde, A luz esmorece,
dissolve-se a noite escura . . .

Gritos e gritos na arena.
Duelos do Não e do Sim . . .
Voar ! A amplidão é serena,
sobre as nuvens do Sem – Fim !


A década de 50 do século passado foi aparentemente a mais produtiva do poeta. “ BAILARINA” foi um dos sonetos publicados. Inspiração, imaginação e fantasia na sua elaboração.


BAILARINA


O salto conduz à estrela,
na luz a glória cintila.
Loucura santa ! Contê-la
é a faina da hora tranqüila.

Vitória - régia em volteios,
ninfas de selvas e empíreo,
céu de clarões e gorjeios,
Lírio nos espaços, lírio . . .

A arte divina, parece,
é amargurada procura.
Embalde, A luz esmorece,
dissolve-se a noite escura . . .

Gritos e gritos na arena.
Duelos do Não e do Sim . . .
Voar ! A amplidão é serena,
sobre as nuvens do Sem – Fim !

Gonçalves da Costa

Comentário


O poema CANÇÃO foi publicado há mais de cinquenta anos em edição comemorativa do décimo nono aniversário do Jornal do Povo de Ponte Nova. Nota-se na obra uma forte influência dos movimentos literários pós - romantismo.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350-000 -Raul Soares (MG)


CANÇÃO

Voaram punhais do teu corpo
furaram o lago triste
vieram os peixes à tona
para o cântico da lua . . .
Lâminas virgens, divinas,
água e sangue ao recebê-las
se tornam em harmonias,
logo se tornam estrelas.

Teu corpo, flor pequenina
das paisagens do mistério,
ínfima m chispa, incendeia
a cabeleira das noite.
E o réprobo, o expatriado,
que se arrasta num gemido,
sente, entre sombras difusas,
a estrela do lar perdido.

Essa esperança que afaga
espera o afago sem nome
que há de surgir como surgem
os pensamentos dos anjos,
e os delírios amorosos
Aos lírios dos vales fundos,
Aos lírios, em cujo seio
Sorriem todos os mundos.

Sinto lanças pela carne,
teu corpo é incêndio de lanças,
os meus olhos profanaram
a auréola ardente de santa . . .
A noite te envolve a fronte,
noite - loucura estrelada,
e nos teus braços em chamas
colherei a madrugada.

Gonçalves da Costa

Comentário

No ano de 1957, na tranqüilidade de Raul Soares, Gonçalves da Costa escreveu e publicou “SONETO” e “ESCUTA”, que lançamos hoje nesta coluna de nostalgia e que resgata a memória de um dos maiores poetas mineiros do século passado.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha -64
35350 - 000 - Raul Soares (MG)

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SONETO

Serei a morte farejando a vida
na primavera azul das tuas formas,
a visão será pétala caída
nesse mapa telúrico, sem normas . . .

Contemplativa, ambiente, silenciosa,
a mensageira do esplendor mortiço,
do seu altar, virá despir-se a rosa
em santidade, em madrugada, em viço . . .

Vultos de mármore, aluviões de renda !
De joelhos ! . . . No crepúsculo, a oferenda
é humanidade que se diviniza . . .

Serei presença em teu mistério, amada,
visão entre céus, lívidos, coroada
de eternidade, som, lampejo, brisa . . .

#

ESCUTA

Escuta, ó Canção – Ternura.
Amanhã seremos crianças,
colheremos, na verdura,
borboletas e esperanças.

Serão asas os meus braços,
duas asas te darei . . .
Serão nossos os espaços,
a estrela, a barba do rei . . .

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

Comentário

Em mais um “Cântico” do culto poeta, cuja obra procuramos resgatar nesta despretensiosa coluna, encontramos a sua induvidosa vinculação à Escola Mística. “Violante”, a “ virgem Violante”, referida nos seus versos, foi a sóror Violante do Céu, poetisa portuguesa que nasceu em Lisboa. Cognominada pelos seus contemporâneos a décima musa portuguesa. Da sua obra, toda mística, fazem parte : Rytmos, Parnaso Lusitano de Divinos e Humanos Versos. Escreveu em português e espanhol.
Em “Canção Leve” muito lirismo e belas imagens.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 000 - Raul Soares (MG)


Cântico

A idéia veio, radiante.
O encanto raiou, após . . .
Violante, a virgem Violante
Paira bem junto de nós.

Arderei em mil fogueiras,
Serei vale, asfalto, rosa,
soarão vozes carpideiras
sobre a manhã dolorosa.

Ouço, na incerta procura:
“O anjo mau tornou-se bom . . .
E arrasto a chaga sem cura
pelas escarpas do som.

Vão andarilhos buscando
itinerários divinos,
não sabem onde nem quando
a aurora envolve os destinos . . .

Desço os degraus do mistério.
Sobem outras luzes, já . . .
Violante é um país etéreo
que em meu ser florescerá.

- x –
CANÇÃO LEVE

Sempre a música distante
a insinuar devaneios . . .
Ninfas vestidas de arco – íris
cantam nos bosques alheios.

Talvez o cântico leve
em carruagem se transforme
para levar-me às paragens
onde o Espírito não dorme . . .

A morte, embora faminta,
Sempre tem olhos escassos,
Flui nos cânticos de vida
que assoberbam os espaços.

Rosa, ó flor de hinos intactos,
Os próprios ventos governas . . .
Que sobre mim te desfaças
em harmonias eternas.

Gonçalves da Costa

Comentário

Soneto” e “Depósito”: dois sonetos bem ao estilo de Gonçalves da Costa, um dos grandes poetas mineiros do último milênio. Temas fortes e chocantes em linguagem simples e impregnada de lirismo levando o leitor a momentos de intensa emoção.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 000 - Raul Soares (MG)


SONETO


Os cães do tempo laceraram vestes e carnes . . .
Vai seguindo o mutilado . . .
No devaneio, expõe rasgões celestes,
por onde escorre o sangue iluminado.

Pássaros, cujo canto é embalo e norte,
ressurgiram dos mortos, de improviso,
e o vento irmão do luar varreu a morte,
- poeira do transitório paraíso.

Há a virgindade dos primeiros luares,
o hino do início que ficou nos ares,
vastos rosais de bem-aventurança . . .

O mutilado . . . Grande como um culto,
visível nos espaços, o seu vulto
é rodeado de estrelas, uma lança . . .

- x -

DEPÓSITO

A tempestade, distribuindo sustos,
uma noite do século me aviva,
Gritos, mortos, raízes, vãos arbustos,
ó generalizada sensitiva . . .

Relâmpagos nas mãos desnorteadas . . .
Mãe onde estão os frutos do teu ventre ?
Água e terra, lufadas e lufadas
Entre ermos vultos, entre angústias, entre . . .


Aturdimentos. Orações partidas.
Vidas gemendo o amparo de outras vidas,
a salvação, o estio, a estrela, a calma . . .

Aparição de horror transpondo muros,
Atravessando sóis e céus escuros. . .
Ó crucificação no outeiro d’alma !

Gonçalves da Costa

Comentário


Em um poema, a que deu o título de “Cântico”, Gonçalves da Costa, um poeta erudito, faz referencia à “sombra de Circe” e ás “vestes de Nostradamus”.
Circe é a célebre feiticeira, a quem Homero atribuiu grande papel na sua Odisséia. Ulysses desembarca na ilha em que Circe habita, e esta, para o reter junto de si, faz que os companheiros do herói bebam um licor encantado, que os transforma em porcos.
Nostradamus, célebre astrólogo e medico, que nasceu em 1503 e faleceu em 1566, muito conhecido pelas suas profecias. No livro de Nostradamus, segundo os seus estudiosos, estão devidamente contemplados todos os acontecimentos importantes para a humanidade, passados e futuros.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 000 - Raul Soares (MG)


CÂNTICO

A hora é o imortal continente
sem relógios, sem fronteira,
tudo nada imanente
nas magnitudes rasteiras . . .

Mundo disforme, impreciso,
o vulto da hercúlea rocha
- fria visão de um sorriso
que há milênios desabrocha.

Lousas, vozes, pergaminhos,
ó mensageiros eternos,
povoadores de caminhos,
entre flores e entre infernos !

A voz real que ergueu salmos
se manifesta nos ventos,
sobre os mesmos dias calmos
e os mesmos dias violentos.

Eis, além, quase a sumir-se,
um vulto por entre os ramos . . .
Talvez a sombra de Circe,
nas vestes de Nostradamus.

Indagações, olhos frios,
buscam a face do morto.
quantos mares ! Quantos rios !
Onde achar o último porto ?
Fica, na mente, a loucura,
colhendo a rosa do encanto . . .
Bendito esse mal sem cura,
que em tudo faz ver um santo !

A Amada é um lírio? um espinho ?
Dizei-me, lábios de pedra,
pois plantada em torvelinho,
a haste do sonho não medra.

Indômito, o olhar se altéia,
abre estradas sobre as grimpas,
e as nuvens são nívea areia,
que as plantas fendem, tão limpas . . .

Floresta de vácuos, crânios,
Genuflexórios, punhais,
tudo - fogos momentâneos,
tudo – incêndios imortais !

Gonçalves da Costa

Comentário

Na 3ª edição refundida e ampliada sobre a literatura luso – brasileira, elaborada pelo Prof. Francisco da Silveira Bueno, encontramos uma competente apreciação sobre a Escola Simbolista : “ Uma relação contra a frieza e o artificialismo da escola parnasiana e, por isso, predomina exclusivamente na poesia. A razão nada tem que fazer com as musas. Só a sensibilidade lhes pertence. Nada deve ser dito claramente, de maneira direta, a descoberto. Tudo deve ser dito pelo meio de maneira vaga, indefinida, indeterminada, para que o leitor advinhe o resto, complete o quadro imaginado, componha a cena que não foi senão esboçada, recorrendo à sua sensibilidade. As onomatopéias têm grande influência nesta escola penumbrosa e sombria. O sonho vale mais do que a realidade, diziam os simbolistas e tudo há de ser apresentado sob figuras, simbolicamente. Desta penumbra, destas sombras e meias – tintas da escola simbolista fácil foi passarem os poetas ao misticismo, não como a Igreja o considera, mas, no sentido de alheamento das coisas da terra, duma esparsa bondade em tudo, dum sentimento de aniquilação do poeta que deseja desprender-se das preocupações materialistas para elevar-se a uma região mais pura, que ele próprio não sabe o que seja.”
O poema “REFLEXO” de Gonçalves da Costa, a seguir transcrita, está impregnado da influência simbolista e mística que em Minas Gerais teve como estrela maior Alphonsus de Guimaraens, que nasceu em Ouro Preto a 24 de julho de 1873 e faleceu em Mariana a 15 de julho de 1921.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 - 000 - Raul Soares (MG)


REFLEXO

Santas mãos de Madalena
sobre a amargura do forte . . .
Uma alvorada serena,
vozes que afastam a morte.

Os pés mergulham no ermo,
A alma sentiu-se perdida.
Veio o crepúsculo enfermo,
sem que houvesse despedida . . .

O passado sempre volta,
no seu vestido de espelhos . . .
Planta e rastro, mútua escolta,
Os abnegados, de joelhos . . .


Rosais de embevecimento
Tornavam a área infinita.
Hoje, o limite nevoento
É como um olho que fita.

Eis a dupla feita de almas,
Tênue cântico a entretê-la . . .
Transpõe alamedas calmas,
À luz mortiça da estrela.

Gonçalves da Costa

Comentário

“No extremo verdor dos anos presumimos muito de nós, e nada, ou quase nada, nos parece escabroso ou impossível. Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-nos apenas a que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a confiança pérfida e cega. Com o tempo, adquire a reflexão o seu império, e eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em perpétua infância. “ (Machado de Assis)

*Mais de meio século se passou e a poesia de Gonçalves da Costa está presente, com maior força e beleza. Talvez, dirão alguns, uma conseqüência natural da mediocridade que impõe a predominância do non sense, o descompromisso com a forma literária de bom gosto, o imediatismo e a materialidade da vida moderna.
Costuma-se dizer que há premonição nas falas dos poetas. Estaria esta presente no poema “CÂNTICO”, quando o poeta escreve: “Chegada (aviões). Embate (impacto). Estremece o enorme castelo do ar (World Trade Center), e explode, numa quermesse (fogo), o mundo inteiro a cantar (choro e lamentos)“ ?

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
Raul Soares (MG)


CÂNTICO

As aves voaram, ansiosas,
das íntimas cordilheiras . . .
Seriam aves ou rosas
as tresloucadas viageiras ?

Chão de todos os momentos,
Visões encadeiam horas,
Os dias caminham lentos
Para o ciclo das auroras . . .

Os lábios na ansiada fonte,
ninguém descansou, ninguém . . .
Que o rio azul se defronte
com a madrugada que vem . . .

Como estremecem as luzes
nos corredores da espera !
Além epitáfios, cruzes,
perdidos na primavera . . .

Chegada. Embate. Estremece
o enorme castelo do ar,
e explode, numa quermesse,
o mundo inteiro a cantar.

domingo, 24 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

Comentário

A inspiração, a força da poesia de Gonçalves da Costa, a beleza de suas imagens está presente no poema “ESPARSAS”.
Cultura esbanja o poeta ao se referir a Mantua, localizada na Itália, forte praça de guerra; rico museus de culturas e Eleusis, cidade da Ática, a N.O. de Atenas, onde existia um templo de Ceres, em que se celebravam mistérios famosos em toda a Grécia. O mesmo se pode dizer quando evoca a Virgílios, lembrança de Virgílio, o mais célebre dos poetas latinos que nasceu nas proximidades de Mantua; autor da Eneida, das Geórgicas e das Bucólicas. Protegido de Octavio e Mecenas; faleceu antes de concluir a Eneida, que ele queria destruir. Imitador particularmente hábil dos antigos, particularmente de Theocrito e de Homero. E quando fala em Homeros rende a sua homenagem a Homero, célebre poeta grego, considerado como o autor da Ilíada e da Odisséia. Fato singular: sete cidades reclamam a honra de haver sido o berço do notável poeta.
Bem ao estilo do poeta o fecho do poema: “. . . louco divino . . . Ao partires, almocemos lua nova, cozida em caldo de arco – íris.”

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 -000 -Raul Soares (MG)

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ESPARSAS


O olhar dos abismos, crede,
torna os meus olhos insanos . . .
Os olhos loucos têm sede
devoradora de oceanos.

Homens do século, ovantes,
que entoais o canto profundo . . .
Sois os modernos atlantes.
levais nos ombros o mundo.

- Se a eternidade é o momento,
(um verme lírico exclama),
dela vivo e me alimento,
dentro da rosa de chama.

O cenário, quanto é hediondo !
Vocifera, uiva, pragueja. . .
Horrorizado me escondo
neste silêncio de igreja. . .

A criancinha baixa à lousa,
pela manhã socegada,
- sol de asas tenras que pousa
nos ombros da madrugada.

Tuas lágrimas doloridas,
lázaro e poeta, ao vertê-las,
vês tua carne em feridas,
vês tua alma nas estrelas.

Velhos tempos . . . Mantua, Eleusis. . .
Os Homeros, os Virgílios,
Caminhavam entre deuses,
Eram suaves andarilhos. . .

Ver a estrela dos tenazes.
Não lastimar nem sorrir.
Entre guerras e entre pazes,
Não ser notado. . . e existir.

Nas paragens ilusórias,
vovós aéreas, as brisas,
me embalam, contando histórias,
por estradas sem balizas.

Vais de viagem para a cova,
Louco divino. . . Ao partires,
Almocemos lua nova,
Cozida em caldo de arco – íris.

Gonçalves da Costa

Comentário

A poesia aproximou Gonçalves da Costa e Sotero Silveira.
Ambos, com muita sensibilidade e inspiração depositaram no acervo cultural de Raul Soares obras de real valor. Gonçalves da Costa e Sotero, são seres privilegiados. Ocupam um espaço reservado a poucos.
Os poetas divulgaram os seus trabalhos num mesmo veículo: os jornais de Minas Gerais.
Sotero cuidou melhor da sua criação enfeixando em livros as suas poesias. Ainda hoje, continua inspirando-se e inspirado ampliando a sua obra.
Gonçalves da Costa é falecido. Muito do que escreveu, perdeu-se. Os jornais que o divulgou não mais existem. Nem mesmo modestos arquivos. Temos nos valido de alguns poucos exemplares do jornal “O IMPARCIAL”, de Hugo Leão, para resgatar a memória de Gonçalves da Costa nesta nossa despretensiosa coluna.
Nos idos de 50 um ACRÓSTICO de Sotero Silveira homenageou Gonçalves da Costa.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350-000 - Rul Soares (MG)

De Sotero para Gonçalves da Costa:

Glória e louvor ao grande poeta,
Orgulho dos teus caros pais,
Nobre, preclaro na tua meta,
Como os teus sublimes ideais.

Amante da pura poesia,
Literato, culto de escol,
Vais-te tornado cada dia
Esplendoroso como o sol !
Sim, és um vulto na história

Da atual intelectualidade,
Assim serás pleno de glória,

Cantando na posteridade !
O menestrel, das musas templos,
Sempre pelo clássico primas !
Tentando imitar teu exemplo,
Aceita mestre, minhas rimas !

Gonçalves da Costa agradeceu:

Santos, gênios, heróis, sábios, profetas !
Ouvis o sussurrar de asas inquietas,
Tangidas pelas mãos limpas do luar . . .
Ergue-se para vós o olhar do mundo.
Raios fundem o vosso céu profundo.
O ocaso, além de vós, tenta recuar . . .

Sempre hão de soar, por vós, canções e palmas.
Inundam o alvo chão das vossas almas,
Lírios de fé, o Sacrifício, a Cruz . . .
Vem a amizade viva, que é uma prece,
Entoa hinos a quem não merece
Ígneos sois vós, que vos perdeis na luz. . .
Rodeiam, sim, relâmpagos e sóis,
A fronte dos profetas, dos heróis

Gonçalves da Costa

Gonçalves da Costa

Comentário

REVISÃO” é mais uma página do poeta impregnada de simbolismo e imaginação . E muita rica de conceitos.
Retrata a conduta humana “num calvário que se delineia nos confins do impreciso”. ” Para que tantos extremos, ó imagem feita de luar?”. “Em toda parte acharemos momentos para chorar “.
A leitura e a meditação enriquecem o espírito.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350-000 - Raul Soares (MG)

REVISÃO

Não um deserto que nasce,
nem rica paisagem, não.
Apenas a santa face,
apenas um rosto irmão.

Nem seria necessário
que houvesse estrela no aviso . . .
Delineia-se um calvário
lá nos confins do impreciso.

Quantas e quantas auroras
testemunharam o afã !
A estrada sob as amoras,
um solo todo de lã . . .

Depois, vem um vento e espalha
os membros insatisfeitos,
pois faltam tecido e palha
para a feitura dos leitos.

Para que tantos extremos,
ó imagem feita de luar ?
em toda a parte acharemos
momentos para chorar . . .

Desencontro., Alternativas.
No prélio, que os fracos vençam . . .
Ás almas fortes, cativas,
que apenas fique uma benção.

Dos viajores, o infortúnio,
na noite, abateu um só.
Caminhar ! O plenilúnio
cai sobre as vinhas de Jó . . .

Seguem, leis, altos decretos,
o mesmo curso dos rios.
furtam-se os olhos inquietas,
ao punhal dos olhos frios . . . .

Inútil alçar-se o aviso,
pois nem tudo o tempo rói . . .
Sempre , a flor, o paraíso,
o rosto frio do herói.

Gonçalves da Costa

Comentário

Em “ELES ESTÃO NO FUTURO” o poeta esbanja talento e imaginação. Ao
arbítrio do leitor fica a interpretação do alcance da narrativa e ao imaginário de cada um o retrato da “ Era Nova, que se esconde atrás dos montes”.
A linguagem ora é forte, até contundente; em outros momentos expressa conformismo, estupefação e ternura.
Afinal, seriam os “homens fortes”, os “homens de músculos de bronze”, seres extraterrestres ?

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350- 000 - Raul Soares (MG)


ELES ESTÃO NO FUTURO

Ainda virão os homens fortes, os homens de músculos de bronze,
Que apagarão da História a lenda do fim do mundo.
Um sol novo lampejará na ponta das suas espadas.
Gotas de sangue vertido desabrocharão em músicas e chamas,
E rodearão de glória a face dos heróis . . .
Ainda virão os homens fortes . . .
Suas plantas em fogo hão de queimar, no solo
Ao rebentos do Morbo, o caule do Obscurantismo,
Com as mãos rudes construirão Cáucasos,
E neles acorrentarão o povo triste das Misérias . . .
Seus olhos serão sóis vermelhos, cujos clarões acordarão a seiva do seio das pedras
E acordarão a Ondina virem esquecida entre os abismos.

Os homens fortes virão e povoarão os vales.
Suas vozes guerreiras se elevarão aos cimos
Onde as aves, bêbadas de altura, mergulharão as asas na luz.
Eles cantarão cânticos novos, em vozes quentes como a voz das chamas.
Bandeiras estranhas tremerão diante das legiões
infrenes, que irão pisando ruínas e irão soerguendo impérios.

Quando vierem os homens fortes, a terra será um ventre farto.
E eles possuirão a terra.
Colherão cachos e espigas virgens entre as nuvens . . .
Ante os seus gestos, os rios rugirão contrariedades, mas adormecerão submissos . . .
Eles, os homens fortes, hão de arrojar na pira sagrada a divisa – impossível,
E hão de construir um lema novo, rodeado de estrelas.
A terra os contemplará, atônita, mas beijará a planta dos seus pés ardentes.
Eles sorrirão para a altura, e a altura se abrirá para eles num sorriso largo.
As minhas mãos se estendam para os homens fortes, da Era Nova, que se
esconde atrás dos montes !

Gonçalves da Costa

Comentário

Os versos no poema “FUGA” mostram a força e a expressão das palavras do poeta aliados à sua capacidade narrativa a prender o leitor até a última estrofe.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 -000 - Raul Soares (MG)


FUGA

Correrias . Burburinho
O atropelo é um cão que ladra . . .
Vai o troveiro a caminho,
Conduzindo a sua quadra.

Quem pode seguir tranqüilo ?
Pelos campos lavra insânia,
Semeando seres do Nilo,
Semeando tigres da Hircânia . . .

De blocos de fantasia
Construamos a muralha,
Entre apelos de agonia:
- “ Deus nos valha! . . . Deus nos
valha ! . . . “

Gloriosas aves felizes !
Ao solo deixam a sombra,
Seguem claras diretrizes
Onde as nuvens são alfombra . . .

Alheemo-nos da terra,
Que é torvelinho de brasas,
Ouçamos o canto que era,
- a ladainha das asas . . .


A hora convulsa que passa,
É uma insensata, uma louca . . .
Enche de vozes a praça,
Carrega punhais na boca . . .

Olhar somente o passado
E o porvir, como o deus Jano . . .
O presente, desvairado,
Esmaga no abraço insano . . .

O caminho dos delírios
Se estende a plagas remotas :
No passado dormem lírios,
No porvir cintilam rotas . . .

Se o olhar volver ao presente,
Deixemos que o incêndio explua . . .
Só pôr momentos, somente,
A fumaça esconde a lua.

Abre-se o céu, claro e franco.
Nas estrelas em desmaio,
Nos vemos virgens de branco
Nas festas do mês de Maio.

Gonçalves da Costa

Comentário

Críticos desvairados costumam considerar a poesia uma expressão menor da intelectualidade.
Ledo e crasso engano.
Em verdade o poeta é um dotado de muita sensibilidade e competência. Em poucas estrofes consegue passar ao leitor seu estado d’alma e suas emoções.
Sabe bem trabalhar as palavras.
Concisão e precisão são seus grandes atributos.
Um poeta - quase sempre - é um bom escritor em prosa.
A reciproca nem sempre é verdadeira.
Gonçalves da Costa foi notável: em prosa e em versos.
O nosso poeta foi influenciada pelas escolas parnasiana e simbolista, o que também aconteceu com o Prof. Edward Leão, outro grande poeta de Raul Soares.
A escola simbolista foi algumas vezes considerada confusa, ininteligível.
Os seus mais ácidos críticos, porém, reconheciam-na como muito sonora e muita harmoniosa aos ouvidos.
Ao poeta simbolista é facultado criar a sua língua própria dando aos vocábulos as significações que melhor lhe pareça.
A partir desta edição, vamos transcrever algumas das obras em versos de Gonçalves da Costa, para deleite de nossos cultos leitores.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350-000-Raul Soares (MG)


HÚMUS

Uma vaca malhada vem roendo
a erva que se estende pelos dias . . .
Pousam-lhe sobre o dorso o Belo e o Horrendo
- duas aves extremas, erradias

O amor selvagem, os despenhadeiros.
Entre as flores do céu, Taurus se esquece,
e a noite ergue os acordes derradeiros
para o espírito virgem que amanhece.

Cai, gota a gota, o leite confortante,
sobre a paisagem lírica, e o instante,
somente a rosa em cismas o descreve.

E os anjos, que o olhar não vê, nem sente,
sobrevoam os círculos da mente . . .
são uma nuvem leve, muito leve . . .

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P R O C U R A

Vazia, se avizinha a madrugada.
Como num caos, sinto a cabeça oca . . .
Há uma febre, há uma voz estrangulada
que se perde chamando a virgem louca . . .


Como um fantasma, espera a fugitiva
que se some por entre véus escuros,
e a minha angústia é como tocha viva
resplandecendo sobre os altos muros . . .


Cavalgando dragões, sinto corsários
cruzando-se na treva, extraordinários,
ajudam-me a buscar, pelas esferas,

A virgem louca, a triste, a evanescente,
a que na noite vem, furtivamente,
do continente astral das primaveras . . .

Gonçalves da Costa

Comentário

O JORNAL DO POVO, de Ponte Nova, fundado pelo jornalista Aníbal Lopes, foi por muitas décadas um incentivador das manifestações culturais de nossa região. Gonçalves da Costa esteve presente, nas páginas do referido jornal, em muitas das suas edições. Em 30 de abril de 1980, festejou o 47º aniversário do jornal com a página “APARAS”.
Neméia, referida no texto, é a pequena região da Argolida (região montanhosa da antigas Grécia ao N. E. de Peloponeso; cap. Argos), que o leão depois morto por Hércules, devastava.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha- 64
35350-000 - Raul Soaes (MG)

APARAS

Pela quadragésima sétima vez o JORNAL DO POVO atinge o marco natalício, e o Tempo, numa vênia cavalheiresca e larga, estende o braço dando-lhe passagem.
Veículo de comunicação e cultura, de alma ereta e sadia, que segue atento, fiel ao seu postulado da primeira hora, sempre aberto em linhas demonstrativas, constitui um axioma, rodeado de admiração. Realidade autêntica, dentro da paisagem humana, dá-nos também a ousada impressão de uma aragem de carne viva, que vai livre pelas ruas, pelas clareiras, colhendo e levando, indiferentemente, exalações de opulências e misérias, para o conhecimento público, para a devida apreciação e julgamento. Aragem, sim, de asas expansivas, parte em seu vôo periódico, vai além dos limites do próprio berço, de rincão em rincão, como fazem pássaros, viajores bêbedos de distâncias, nuvens, caminhos inscritos no chão e abertos ao passo das grandes arremetidas . . .
E o JORNAL DO POVO não se veste de sensacionalismo da imprensa marron, que sai enforcando desesperados pela cintura, que sai apregoando a ressurreição de Hércules, a afogar, agora, num copo de leite o leão de Neméia . . . Capta os fatos, passa-os por um crivo sereno, depura-os com honestidade, para expô-los às vistas alheias. E tal norteamento se observa, também, quando se trata de difundir ou patrocinar qualquer medida de vulto, ou de interesse público. É sempre portador de títulos dignos de fé. E é de louvar-se, ainda, a sua acolhida à literatura : sempre existe algum espaço aberto para aqueles que querem expor as suas tentativas, bem como para os veteranos das letras . . . Sempre nos integramos na avalanche daqueles que, pelo menos através de algumas linhas, vão levar sua palavra de amizade e reconhecimento ao JORNAL DO POVO. Sempre reunida, a equipe incansável e sonhadora, verdadeiro conjunto harmônico, se acha a postos para a recepção e o acolhedor abraço, tocado de magnetismos; ao centro, em moldura de ideal, sente-se a figura cintilante e rediviva do saudoso Aníbal Lopes, a quem se referiu José Lopes, nas belas linhas de saudade estampadas no frontispício do JORNAL DO POVO, em seu número 874, há 32 anos : - “Parece que o estamos vendo a receber os abraços e os aplausos. Bem que ele os merece. Olhem a sua fisionomia. Há como que uma transfiguração. Todo o seu ser braceja num verdadeiro oceano de contentamento. Até transborda, já que não cabe em si”.
Parabéns, felicidades, à equipe amiga do JORNAL DO POVO, nesta data, junto ao limiar de mais um ano de lutas e vitórias.

* * *

Quando a alma voeja entre pétalas de solidão, em recinto santificante, suas asas tocam as da Poesia, e do contato mágico emergem mundos, panoramas, novas asas, aparecem figuras de acalanto com as mãos estendidas para enxugarem lágrimas . . . A alma se estrela de pupilas onividentes, vê-se lançada num oceano de beatitudes. Surgem as paisagens que cintilam além dos limites da morte, onde formigam seres que não morrem, imunes à insensibilidade avassalante das leis naturais, - dessa tessitura inflexível a que se acham acorrentadas as misérias humanas.
A tangibilidade das formas desaparece, cedendo lugar a vozes intraduzíveis, que se advinham de éter, porém contendo em sua aura a angústia de pétalas feridas, auroras de punhos redentores apagando noites, as dimensões universais dos êxtases que coroam as culminâncias . . .
Corsários de fogo assaltam a sensibilidade, e se transformam em hinos, que se estrelam como barcos pelo grande oceano. As mãos perdidas se movimentam, pirâmides ruem, animais ferozes se ajoelham, peçonhas letais se tornam aromas . . . A luz, que delira e que inocula delírios, sublima-se, adquire força, condensa-se em céu; e então a alma, mergulhada em clarões supremos, sente sufocar-se, floresce o apelo dos apelos . . . . Vem então o suor sangrento do Cristo no Horto, as quedas dolorosas, os cravos, e travoso cálice . . . e tudo, sob um murmúrio de pedra, sem som e sem palavras, vem conduzindo a escada de seda para a ressurreição . . .

sábado, 23 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

Comentário

Com muita satisfação apresentamos para deleite dos cultos leitores mais uma bela página do grande Gonçalves da Costa.

José Geraldo Leal
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EXERCÍCIO

Amoça da estrada - sonâmbula dos cabelos virgens - caminha de mãos
estendidas, e sobre elas pousam aves de luz, egressas da madrugada. Os
ventos selvagens se contêm nos limites da morte, e o momento ficou parado, encolhido nos recessos das rosas. As mãos têm leveza de séculos e o espaço, perfurado, deixa escorrer nitrogênio misturado com sentimentalismo. A imaginação se enrola num capuz de linho, porque são vedados exercícios de vôo, enquanto mensageiros conversam com as águas, em pensamento, para que não façam barulho nas pedras. Quem trouxe o dia para surpresa da sonâmbula ? Quem a transformou em mistério e a fez volátil, sorriso e miragem, decepcionando os peregrinos ? Tristezas escorrem pelo chão, vão misturar-se com as ervas pisadas, porque rastros nervosos procuram a bela sonâmbula, por céus e terras a procuram.
Busquêmo-la, sim, ó peregrinos, guiemo-nos pelas estradas mortas, soltemos no espaço a nossa matilha de interrogações ofegantes ! As flores e os frutos sorriem de nós porque certamente a estão vendo, ela continua de mãos estendidas, procurando os caminhos que conduzem ao coração . . . Sigamos, contritos mas intrépidos, deixemos para trás as pirâmides do desalento, as planícies do cotidiano, os vales do talvez . . . Os perfumes iluminados dela, a moça da estrada, a sonâmbula, nos levarão ao coração que ela procura, ao fundo do coração, ó peregrinos deliciosamente loucos ! . . .

Gonçalves da Costa

Comentário

A morte do Prof. Edward Leão motivou a página do poeta Gonçalves da Costa, publicada no jornal "O Imparcial", n. 39, de 28 de abril de 1957.Expressa a sua dor e sentida emoção pela perda daquele que em vida foi a maior expressão cultural de Raul Soares.

José Geraldo Leal
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35350 - 000 - Raul Soares (MG)


PÁGINA DE SAUDADE


Há uns três dias, numa roda de amigos, falávamos de um tema que nasceu com o Mundo - a Morte. Todos os presentes emitiram opiniões, conceitos, teceram lôas, ou exprobrações, sob o ponto de vista científico, filosófico ou religioso de cada um. Todos, porém, acordes em encarar as conseqüências imediatas, positivas, da morte, no terreno material. Foram, então, aventadas hipóteses, figurações de casos concretos . . . A morte penetra num lar, colhe irremissivelmente um dos seus membros queridos. De ordinário, sucedem-se logo os prantos, as lamúrias dos parentes, o abalo e manifestações de pesar das pessoas amigas, o sepultamento . . . Depois, o vácuo deixado, às vezes imprenchível, no afeto dos que ficam, na vida de relação, na esfera social, doméstica ou profissional da pessoa falecida. Se é ela uma dona de casa, cuidadosa e de gosto, sentir-lhe-ão a falta as suas flores, as folhagens da varanda, que talvez ficarão, durante dias, esquecidas, sem tratamento. Os móveis, que viem em simbiose com o seu cantinho exclusivo, o seu ambiente, são quase sempre arrancados dele por mãos estranhas, indo tomar os lugares de outros . . . Se ficou uma criancinha mimada, que já fala e anda, de momento em momento perguntará pela mamãe, aonde foi ela, porque foi sozinha, porque demora tanto . . . ë então que se sucedem as mentiras piedosas, embaladoras. “Mamãe foi passar uns dias em casa da vovó, não levou o filinho querido porque lá existem cães de dentes afiados, que mordem crianças . . . Quando ela chegar de volta dará no filhinho um beijo demorado, depois lhe entregará bombons, um boneco que assobia, um cavalo com asas . . . “ “Mamãe foi ao céu buscar uma estrela para o filinho, está demorando porque os anjos da altura lhe ficam pedindo que conte histórias da terra . . . “ Se a vítima da morte é um homem público, um funcionário atencioso e, serviçal, a figura preferida dos que batem à porta da repartição, há um desequilíbrio, uma ruptura de hábitos, desapontamentos às vezes, entre os que desconheciam a morte do servidor, e o seu substituto. Este, embora seja muitas vezes um elemento à altura, terá que passar por um período razoável de ambientação, com as funções e com o público . . .
No terreno a que chegou a conversação, foi logo lembrado o nome do saudoso Edward Leão. E um dos presentes disse que se ele estivesse vivo, faria anos no dia 26 de abril. E falamos todos de Edward Leão, com saudade.
Saímos dali, pensando em escrever alguma coisa a respeito do grande amigo desaparecido. Lembrança sempre oportuna, e agora mais oportuna ainda. Sim. Porém, como escrever ? E por onde começar ? Quem conviveu com Edward Leão, como nós; quem, no festim da vida, se serviu do pão da sua amizade lustral, diante da sua lembrança, diante da reconstituição mental do que ele foi, logo se lembra também desses edifícios que sobem para o céu e que, só 1a distância, podem ser vistos em toda a sua grandeza.
O poeta e filósofo católico Murilo Mendes, pôs a nu em dezessete longos artigos de jornal a sua cultura e sentimento, dissecando a obra poética, artística, ascética, do seu êmulo em cultura e sensibilidade, e seu grande amigo, falecido, Ismael Nery. Após a leitura dos referidos estudos, vazados num estilo envolvente, borrifado de poesia, concluímos que existem vários pontos de identidade entre Ismael Nery e Edward Leão, - na obra poética e filosofia da vida de ambos. Mas acontece que não somos Murilo Mendes . . . Edward Leão, porém, é um grande tema.

o o o.

São as primeiras palavras do poeta português Antônio Ferro, na sua “A Arte de bem morrer” : “A Vida é o curso superior da Morte. Durante a vida deve aprender-se, apenas, a morrer. Inspirando-nos no citado poeta, poderemos dizer que Edward Leão consumiu a vida fazendo com brilhantismo o se curso superior da Morte, a sua prova – concurso para a Eternidade. Individualidade que se mostrava por diversas facetas, - jornalista, poeta, educador, músico, “causeur”, orador, serventuário de justiça, chefe de família e cidadão, em tudo isso encontrava ele material para o seu grande aprendizado. E era ainda uma voz autorizada, o conselheiro prudente e sábio de todas as emergências. Desdobrava-se, repetimos, em múltiplas atividades, e a todas elas se entregava com dedicação, com afã, como quem tem o temo marcado para realizar uma grande tarefa . . . E sempre incansável. Consumia-se, mas não capitulava. Como o soldado mortalmente ferido, que se arrasta até à barricada a fim de dar o último disparo, o serventuário, já muito doente, ia sempre ao Fórum, em heróicas tentativas de reação contra a moléstia. Por fim, não podendo mais resistir, e sempre procurando esconder a amargura, começou a aparecer mais raramente, como se estivesse aos poucos se despedindo de nós, ou a fim de que, insensivelmente, nos fôssemos nos desacostumando do seu convívio. Por esse tempo, também, à custa de sobre-humanos esforços, ainda aparecia nas aulas, onde ministrava as últimas lições aos seus queridos alunos.
Em seu leito de sofrimento, mesmo nas horas mais cruciantes, sempre se mostrou cordial, sereno, resignado . Sempre recebia com um sorriso os amigos que o iam visitar. Ocasiões dolorosas em que os amigos, diante de uma vida preciosa, que se consome inexoravelmente , ainda tentam enganar-se, tentam enganar, fantasiando melhoras que não existem. . . O doente dava às vezes a impressão de já sentir a mente mergulhada noutras esferas, o olhar vago, numa passividade mística . . . Espiritualizava-se, abeirava-se do Absoluto.
Um mês, mais ou menos antes, estivera durante algum tempo em tratamento na Capital Mineira, de onde, após obter sensíveis melhoras, voltava, dizendo que não mais sairia a fim de medicar-se. Aqui chegou cheio de esperanças, que se propagaram à família e aos amigos, porém tais melhoras foram passageiras. Alguns dias antes do fim, foi de novo levado para Belo Horizonte, tendo sido a sua última viagem, que se processou na realidade e no sonho . . .
Naquela cidade, cercado dos recursos possíveis da Ciência, assistido pela família extremosa e alguns amigos, e após receber os últimos Sacramentos da Igreja Católica, entregou-se `morte, dignamente como vivera, serenamente . . . Era uma vida que, no terreno físico, se perdia na Grande Noite, depois de ter servido de farol a tantas vidas.

o o o

Edward Leão há de ser sempre lembrado, como chefe de família, como funcionário público, como professor, como poeta . . . Idealista e sonhador, pontificava e ensinava, resplandecente de satisfação e com o espírito voltado para o futuro. Consumiu grande parta da sua existência, na difícil tarefa de insuflar conhecimentos na mocidade de Raul Soares. E abrasado desse divino propósito, nele persistiu até o fim, até não mais resistir, entregando-se em holocausto . . .
Foi ele um grande poeta, culto e sentimental. Sua obra poética, bastante vasta, embora dispersa, modelada nas duas escolas de que foram os principais expoentes - Bilac e Cruz e Souza, há de ficar na nossa lembrança , e constituirá um dos maiores acervos da cultura e sensibilidade desta terra. Sentimos não haver espaço para a transcrição de alguns versos, que mostram as alturas a que o transportava a sua inspiração !
Dotado de cultura geral, tinha uma expressão fácil, copiosa e envolvente. Se entrávamos às apalpadelas num assunto qualquer, ele, notando logo tal situação modestamente, e com habilidade, se esgueirava até atingir o assunto, dominava-o, dissecava-o até ao âmago.
Depois da morte de Edward Leão, em vista do que dizem algumas das suas poesias, e em vista de reminiscências de conversa, concluímos que ele, uns dois ou três anos antes, tivera pressentimento do quanto lhe restava de vida. Por várias vezes, durante uma conversação, e mesmo quando falava em público, repetia frases ais ou menos como esta : “ Amanhã, quando eu for apenas uma lembrança . . . “ E punha nas palavras uma tristeza, como se referisse ao dia seguinte, e não a um amanhã do futuro distante.
Aquele grande amigo, supomos deve ter morrido intimamente feliz. Pôde ver o desabrochar de diversas flores, no extenso viveiro tratado por suas mãos. Deixou um sem número de discípulos, normalistas e contadores. Entre os seus inumeráveis alunos, contam-se advogados, médicos, farmacêuticos, etc., todos desta terra, inclusive dos seus dois filhos, sendo um deles um dos grandes causídicos do nosso Foro, e o outro,, tabelião e digno substituto seu, que já o era antes da sua morte, embora não o fosse em caráter definitivo como agora. Ambos finos intelectuais, como que trazendo estampado na carne o selo indelével de origem . . .
Não somos materialistas. Como o saudoso Edward Leão, cremos nas belezas eternas, cremos em Deus, cremos na vida futura, cremos nos prêmio pelas boas obras. E ele, que, como pôde, se entregou, em partículas do seu ser, a Raul Soares e ao seu povo; ele que sempre foi um espírito generoso, que sempre viveu de acordo com os princípios cristãos e sempre temente a Deus, ele há de estar recebendo, na vida eterna, de acordo com o seu sacrifício. É o que nos diz a nossa crença. E seja ele, hoje, flor, estrela, céu, poesia, música, ou simplesmente alma, ou simplesmente um reflexo do Eterno, nós, nos descobrimos diante da lembrança de Edward Leão.

Gonçalves da Costa

Comentário

Após um período de paralisação o jornal O IMPARCIAL voltara a circular semanalmente em Raul Soares, por iniciativa de Hugo Leão, uma das grandes lideranças intelectuais de nossa terra. Gonçalves da Costa comemorou o acontecimento com a bela página a seguir transcrita.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350-000- Raul Soares (MG)

* * *
Há, entre montanhas, um lugar feito de dias e noites, chamado Sítio de Fênix. Nos seus jardins as flores da vida sobrepujam as flores da morte. Contém fontes restauradoras, junto das quais vão descansar, temporariamente, quase todos os jornais do interior. Lá esteve durante uma temporada o O IMPARCIAL. Deixou para trás vários colegas provincianos, e mesmo colegas ilustres, mas voltou.
O IMPARCIAL retorna, pela mão de seu velho amigo, o doutor Hugo Leão.
O doutor Hugo, artista de origem, artista abnegado, desta vez desempenha um papel mais ou menos idêntico ao de Fernandel, no “Dom Camilo . . . “ Reza sobre as armas do O IMPARCIAL. Atira-lhe água benta. Aperta-lhe a destra, e o envia ao combate.
A batalha em que não se cogita de derramar sangue, mas de derramar esclarecimentos úteis, incitamento ao futuro, esperança, sementes de otimismo.
- Por que não está à frente das hostes o velho legionário Edward Leão ? - pergunta logo à entrada, O IMPARCIAL. Alguém o cientifica da verdade fria, inapelável. A fatalidade que se fixa como um selo sobre os destinos humanos ... Uma lágrima toca então o campo da luta. Há uma reflexão dolorosa, um suspiro, um momento de silêncio. . .
Mas, - pondera O IMPARCIAL - o pensamento não descansa. Porque não morre com a estirpe. Acompanha os que descendem, faz florir estradas, onde se encontra transeuntes . . .
O sítio de Fênix não tem comunicações com o mundo exterior. Solitário, faz lembrar aquele subterrâneo que, segundo Vítor Hugo, Caim fez construir, em vão, na tentativa de fugir ao olho da Divina Providência. Agora, porém, O IMPARCIAL, que chega de alma limpa, irá inteirar-se de tudo. Do que há pelas esferas municipais, estaduais, nacionais, mundiais. Observador sutil, maravilhado pelo que lhe merecer censura, ele irá contar muita coisa aos que se dignarem de o ouvir..
O IMPARCIAL, também, terá uma certa semelhança com o célebre gigante da bota de sete léguas. Caminhará com um pé no mundo da realidade e com outro no mundo da fantasia. Porque o seu velho amigo, o doutor Hugo Leão, é uma espécie de Walt Whitman brasileiro, que diz o que é preciso dizer, para retratar a verdade incisiva, numa linguagem aprendida com as flores iluminadas da infância.
Ao O IMPARCIAL, felicidades! Ao intelectual Hugo Leão, parabéns !

Gonçalves da Costa

O ILUMINADO

Ele nascera ao sair do sol. Por isso deram-lhe o nome de Iluminado. No registro civil, Iluminado. No registro de batismo, Iluminado (o vigário discordou a princípio ante a beleza esquisita do nome).
Iluminado cresceu. Fez-se homem. Porém homem comum. Uma cabeça, um coração, uma alma . . . Não parecia estúpido. Alguém dizia que o sol, com o qual havia ele nascido, lhe deixara uma réstia presa na individualidade.
No dia seguinte, as núpcias. Resta ao Iluminado, agora, apenas uma noite de solidão e de sonho. E o luar o arrasta para o grande vale, onde viveu a infância e a mocidade . . .
Quando houverem decorrido mais vinte e quatro horas, onde estará ele com a bem amada ? E a pureza daquele amor sempre o encadeará, assim, como que a um misticismo de santuário ?
Hei-lo andando, andando . . . Todos os anjos do luar lhe vêem entornar paisagens e músicas na mente, ternura chovem sobre o seu coração. Sente-se como um polo, sobre o qual incidem todas as belezas do mundo. As poesias, as doces páginas que lei, até então, o que escreveu lhe perpassam diante dos olhos, rodeadas de ilustrações celestes.
Diante dele, nos espaços, a bem amada, num trono encimado por um dossel de músicas. Bem no fundo um jardim de estrelas . . . O Iluminado se lembra de Tagore, o divino Tagore, e como ele, suplica, de mãos estendidas : “Fazei de mim, ó Rainha, o jardineiro do teu florido jardim. Desistirei de qualquer outra glória. Serei, ó Rainha, o jardineiro do teu jardim ! “.
Sua voz é repetida pelas flores e pelas estrelas, e esse coro sobre-humano, ubíquo, vai acordar em seu túmulo distante suave cantor bengali, o qual, estendendo a sua barba de nuvem sobre os abismos , ergue para o Iluminado cânticos ao amor eterno, dentro do grande vale . . .
O Iluminado quer ajoelhar-se, porém o faz em pensamento . . . Depois segue, murmurando frases que Tagore, ou suas flores, ou as estrelas, ou todos eles (não saberia di-lo) escreveram nas lâminas de sua sensibilidade.
“Não detenhas o rio, ó ave, com o teu cântico. As águas também vão cantando, arrancando harmonias das impurezas que lavaram”.
“Os caminhoneiros, vindos de todas as distâncias, se ajoelham diante do altar. O homem estranho, de pé, não vê , perdidos nos seus mundos introspectivos. Os caminheiros se entreolham, escandalizados, e se afastam pois não ouvem o Grande Cântico . . .”
“Uma gota de amor puro caiu sobre a rocha, e dela se elevou uma canção. Vós, que tendes frio no coração, procurai nas nuvens a canção esquiva”.
No alto da colina vários homens espancam um homem indefeso. A cada pancada voam chispas de luz. Sairão elas das carnes seviciadas ? Sairão elas das mãos que torturam ? Tentemos descobrir. Primeiro, porém, arranjemos escadas de mistério, a fim de subirmos aos corações dos homens que flagelam, ao coração dos homens flagelados”.
“A loucura constrói diques na frente dos ventos para que não levem as horas felizes. Existem cadeias prendendo o sorriso das crianças ? “
“Rodeia de flores o teu coração, ó peregrino, e abelhas de luz seguirão contigo, voando nos teus pensamentos”.
A bem – amada se apagou. O mundo inteiro é luar. O Iluminado se engolfa na sua última noite de solidão e de sonho . . .

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha -64
35350 - 000 - Raul Soares
Comentário

No dia 3 de março de 1969 foi inaugurado oficialmente um novo estabelecimento de ensino em Raul Soares ao qual foi dado o nome de Edward Leão, (Ginásio Comercial Prof. Edward Leão, para alguns, e Colégio Prof. Edward Leão, para outros), homenagem ao grande líder do ensino em nossa terra.
56 candidatos tinham prestado os exames de admissão, nos dias 20, 21, 22 e 24 de fevereiro de 1969, conforme notícia publicada no jornal “Folha da Mata“.
Os fundadores da casa de ensino indicaram para a sua direção o contabilista Éder Ribeiro.
O poeta Gonçalves da Costa festejou o acontecimento publicando no jornal “Folha da Mata” N.º 68, de 3 de março de 1969, uma crônica sob o título “Mais uma unidade Educacional em Raul Soares”. A “Folha da Mata” circulava sob a direção de Sílvio Nogueira de Castro, político e empresário; tendo como Diretor Secretário a senhora Idalina Lanna Rios, professora e poeta de rara inspiração e Diretor Comercial Maria da Cunha Pinto.
Não temos dúvida de que a motivação maior para a manifestação do poeta foi, mais uma vez, prestar uma homenagem a Edward Leão, a expressão maior da intelectualidade em Raul Soares.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha -64
35350- 000 - Raul Soares (MG)


* * *

Planta-se no final do percurso entre o abstrato e o concreto, mais uma realização, de um conjunto de vontades altruístas, voltadas para o futuro de Raul Soares e de sua mocidade representativa.
Realidade digna de encômios, pela sua finalidade intrínseca, pelo nome escolhido para sua bandeira, Edward Leão foi um Academus moderno, senhor de vastos jardins, onde cultivava e cultuava as flores da alma e do intelecto.
Escolha feliz, conseqüência da lógica histórica. . . Vemos sempre, por aí afora. Abrigos São Vicente de Paulo, Corais Santa Cecília, Grêmios de Poesia Luiz de Camões, vemos agora um Educandário Edward Leão. . . O soberano ligado ao seu reino, o santo ao seu altar, o jardineiro às suas rosas.
Nascido em Tocantins, nesse Estado, o nosso Patrono Edward Leão bem cedo se transferiu com sua família para este Município, onde, ao lado de suas atividades de Funcionário da Justiça, se dedicou ao Magistério, durante anos e anos, dando-se em holocausto à educação da mocidade que o empolgava, nesta terra que adotou para a vida e para a morte. Foi ele um grande educador e paladino, e a inscrição de seu nome em uma Casa de Ensino constitui ao mesmo tempo um reconhecimento e uma aureola.
Castro Alves cantou : “Bravo! A que salva o futuro ? fecundando a multidão! . . .” Sim! Bravo! a quem se entrega de coração `grande tarefa de ensinar, de insuflar nas almas a luz do conhecimento, de dirigir mil vistas jovens para os grandes horizontes . . . O educador, artífice do magistério, o que se move aquém das esferas superiores do Ensino, é como o construtor de bases para s grandes edifícios, é como um João Batista a preparar caminhos . . . E Edward Leão foi assim. E o múnus do ensino era para ele um sacerdócio. Transfigurava-se quando ensinava. Perfeito conhecedor de todas as matérias do ciclo, dominava-as e, quando necessário, prelecionava em todas elas, como um apóstolo, tentando fazer o milagre de, com mãos invisíveis, depor tudo o que sabia na mente dos seus alunos. Morreu cedo, porém teve a satisfação de ver muitos daquelas a quem levara pela mão até as portas do Grande Templo, dele saírem ostentando a láurea desejada.
Feliz escolha, repetimos. Ele fez jus ã homenagem. E que da nova célula educacional saiam elementos que a dignifiquem e recomendem, sob o estandarte do grande Patrono escolhido, e que possam partir felizes em novas arrancadas para o Saber.
Nossas felicitações ao novo Templo de Ensino, bem como a todos aqueles que, ensinando ou aprendendo, irão dar-lhe vida, irão torná-lo coisa viva, corpo vivo, sangüíneo, palpitante, como o barro primitivo após o toque dos dedos divinos.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

Comentário

Devemos à gentileza da Profª. Idalina Lana de Abreu Rios, a poetisa INFOLA autora do livro “Reminiscências”, a página “O Peregrino”, publicada por Gonçalves da Costa no “Jornal do Povo” de Ponte Nova.

JGL


O PEREGRINO

Meio dia. Sol em pleno azul! A luz, caindo dos espaços, distende-se, amplia-se, abraçando vales e cordilheiras . . . Há músicas no céu, músicas na terra, músicas nas almas !
O Peregrino, exausto, no cimo de uma aclive, tendo avistado perto a cidade que fremia ao sol, havia parado um pouco, a fim de recobrar novo alento para lá chegar . . .
A poucos passos se erguia uma árvore frondosa, cuja sombra, como dois braços estendidos, parecia convidá-lo a descansar. E o Peregrino encaminhou-se para ela, gemendo, e, na sombra, depôs no chão o chapéu e a mala de viagem, seus companheiros de jornada, e assentou-se quase rente ao tronco do vegetal centenário. Como se sentia aliviado agora ! Seus pés latejavam menos, seu coração batia sossegadamente ! Lançou em torno, então, a vista deslumbrada das distâncias . . .
Ao longe, descuidosamente, pastavam os rebanhos, salpicados pela colina verdejante como estrelas no céu, no mistério das noites claras ! Cintilavam ao sol os vultos ásperos dos rochedos distantes, fazendo lembrar faces enrugadas onde aflorassem sorrisos ! Trapos de nuvens corriam pelo azul, como receosas de serem tragadas pela luz ! No bojo da cidade, que se espreguiçava ao sol, máquinas vomitavam fumo, um concerto infernal de vozes se elevava ininterruptamente, a vida tumultuava ! . . .
E o Peregrino se pôs a cismar . . . Viera de tão longe ! Um dia ( como se lembrava ainda! ) partira ao nascer do sol! As suas irmãs foram esconder-se para não vê-lo partir, e a sua saudosa mãe, velhinha, ficara olhando-o, com a alma sangrando, afogada em lágrimas, até vê-lo apagar-se na curva da estrada! Ah ! quanto o fizeram sofrer aquelas lágrimas ! O seu coração também chorava ! . . . A luz do sol nascente lhe era triste como trevas lúgubres, os cânticos dos pássaros lhe pareciam soluços e as flores que marginavam a estrada eram magoadas e dolorosas como as que vira um dia derramadas sobre a tumba do seu saudoso pai ! . . .
Mas ele seguia. O Destino o arrastava. Como fora longa e martirizante aquela primeira noite, que passou distante do lar paterno! Em lugar dos entes queridos, tivera então por companheiros, numa sórdida estalagem onde se recolhera, vários peregrinos andrajosos, leprosos entes abandonados ao léu, sem família e sem pátria, que viviam errantes, espalhando lágrimas e imprecações aos quatro ventos ! Ah ! os seus primeiros companheiros de infortúnio ! Partiram na manhã seguinte, cada qual para seu lado, uns blasfemando, outros murmurando rezas, e nunca mais vira aqueles fantasmas da Desgraça ! . . .
Os dias foram passando. A imagem de sua saudosa mãe, e as de todos os entes que lhe eram caros, aos poucos lhe foram rolando da retina para o coração, onde as conservava guardadas como em um nicho cercado de luzes. Quanto tempo faia já, que partira ! Era então moço e forte, e sentia a farfalhar dentro do peito uma floresta de ilusões ! Mas bem cedo recebera o beijo cáustico das primeiras desventuras ! Quantas vezes, em paragens desertas, extenuado de cansaço, adormecera ao luar, após fazer magoadas confidências às estrelas; e quantas vezes o dia lhe viera encontrar com as vestes e os cabelos úmidos de orvalho !
Por vezes a asa do amor lhe roçara o coração, mas os seus vestígios logo se apagavam, como as estrelas pálidas ` a luz violenta do sol matutino ! Em quantos olhares puros sentira resplandecer, como numa oferta, a centelha de um amor celeste ! ? Quantas camponesas belas, irmãs das fontes ignoradas e das flores selvagens, ficaram soluçosas vendo-o partir, quando ele ao romper da aurora, se despedia das herdades que lhe haviam dado hospedagem ! ?
Às vezes sentia desejo de ali ficar, para uma felicidade que lhe acenava, mas sempre triunfava nele o desejo de seguir . . . Arrastava-o eternamente uma força cega, a Fatalidade !
E quantas vezes, em tardes brandas como bênçãos, atravessara povoados bucólicos e festivos, onde moças e crianças cantavam, instrumentos rústicos derramavam lânguidas no ar - músicas que vertiam melancolia e saudades em seu coração ! Quantas lembranças, umas risonhas, outras dolorosas, lhe perpassavam então pela imaginação, numa sequência de sombras e clarões !

* * *

O dia começava a declinar. Vencido de fadiga, o Peregrino deitou-se, recostado à árvore que o abrigava, e adormeceu. Aves cantavam na ramagem florida, que estremecia . . . E o Peregrino começou a sonhar. A brisa morna roçava-lhe de manso a face, os cabelos, e vinham aos seus ouvidos a música dos pássaros e o soluçar magoado da ramagem ao vento. Súbito sentiu-se ele transportado ao céu, na asa encantadora de um sonho . . .
A sua vista, atônita, sobrenadou num oceano de maravilhas celestes . . . Envolvia-o agora uma aragem m estranha, suave como o poderia ser o respirar dos anjos. Tudo era cânticos e resplendores ! Via perpassarem alas de virgens envoltas em túnicas alvas e radiantes, e seguiam rezando de mãos postas, até se sumirem além em nuvens de fulgores.
E cânticos e músicas celestes embalavam o Peregrino. Súbito sentiu ele ouvir um toque de clarim e supôs se algum anjo que anunciasse a chegada de Jesus Cristo. Ah ! se o visse ! Arrojar-se-ia aos seus divinos pés, como o fizera um dia na terra a pecadora arrependida . . .
Assim pensava quando, à sua frente, num clarão repentino, delineou-se a cena sanguinolenta do Calvário ! Jesus, cravado na Cruz, a escorrer sangue, irradiava . . . O Peregrino viu-o de relance, e sentiu o seu coração pulsar desordenadamente. Seus membros estremeceram . . . Tentou, num gesto trágico, arremessar-se aos pés do Crucificado . . . e acordou.


* * *


A tarde vinha descendo, calma e sonhadoramente sobre os campos.
O Peregrino lançou a vista ao redor, atônito, mas logo murmurou:- Ah ! sempre a realidade amarga me envolvendo ! . . . Ergueu-se. Ao seu lado achava-se, agora, um rapazinho louro, que lhe foi dizendo:- - Oh ! meu caro viandante ! deves ter sonhado mesmo muitas coisas bonitas, pois vi-te sorrindo sempre, enquanto dormias.
O Peregrino volveu então o seu olhar para aquela criança que assim falava, e que se achava tão confiante e satisfeita ao seu lado.
Teria ela uns doze anos de idade, vestia-se à moda campesina e tinha os pés descalços. Trazia a tira – colo um grande bornal, e via-se em suas mãos uma flauta de pastor. - Meu bom menino - disse o Peregrino - cheguei aqui fatigado da caminhada, e, tendo me deitado para descansar, adormeci, e sonhei coisas tão lindas como jamais havia sonhado ! Fizeste bem em parar um pouco comigo. Vejo que és bonzinho ! Onde moras ? - Moro aqui pertinho, nas vizinhanças da cidade. Se eu tocar com força, da nossa casa ouvirão a música de minha flauta. Vivo pastoreando os rebanhos de meu pai. Vinha eu daqueles montes além, tocando o meu instrumento, quando aqui cheguei, e vi-te a dormir em pleno campo . . . Tive pena de ti, e resolvi ficar ao teu lado até que acordasses. De onde vens ? quem és ? como te chamas ? - Sou um viandante sem pouso e sem roteiro certo. Como ‘ O Peregrino ‘ sou conhecido ! Vim de muito longe, de uma pequenina aldeia desconhecida . . .
E o Peregrino, resumidamente, contou ao pastorzinho a sua odisséia de martírios. Terminando, disse-lhe:- Vou partir ! A noite já vem caindo, o cansaço abandonou-me, e a minha vista, hoje, ainda contemplará outras plagas ao redor . . . e estendeu a mão ao pastorzinho que suplicou-lhe:-Não vás meu caro Peregrino!Já sofreste muito nas tuas jornadas, e precisas descansar ! . . . Vem comigo para a nossa casa ! Sei que meu pai, que é tão bom, te acolherá ! A nossa casa é farta ! Ali, as minhas irmãs cuidarão da tua roupa e minha mãe preparará comida para nós ! . . . Se quiseres, também, todos os dias ensinar-te-ei a tocar lindas músicas na minha flauta ! Vem comigo, e irei tocando uma canção que as minhas irmãs me ensinaram, intitulada “Quando morre um lírio” . . . Vem comigo, caminha ! . . .
Do peito do Peregrino se escapou um doloroso suspiro ! Abraçou freneticamente o pequeno pastor, apanhou o chapéu e a mala de viagem, lançou um derradeiro olhar àquela criança que lhe trazia à lembrança os anjos que vira em sonho, e partiu, deixando-a chorando no meio da estrada.

* * *

Desenrolando o seu painel de sombras, a noite vinha caindo, magoada e silenciosa.
Aos olhos do Peregrino, as montanhas em torno, a cidade imensa, as primeiras estrelas que tremiam no céu, tudo lhe parecia triste como que vela um cadáver.
Taciturno, atravessou a cidade. À saída, em uma igreja pobre, um sino derramava soluços no ar, tristes, muito tristes . . .
Instintivamente, descobriu-se o Peregrino: persignou-se e foi andando, andando, até engolfar-se na noite, atraído pela Fatalidade que o arrastava . .

(Tarumirim, agosto de 1943)