sábado, 23 de julho de 2011

Gonçalves da Costa

Comentário

A morte do Prof. Edward Leão motivou a página do poeta Gonçalves da Costa, publicada no jornal "O Imparcial", n. 39, de 28 de abril de 1957.Expressa a sua dor e sentida emoção pela perda daquele que em vida foi a maior expressão cultural de Raul Soares.

José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha - 64
35350 - 000 - Raul Soares (MG)


PÁGINA DE SAUDADE


Há uns três dias, numa roda de amigos, falávamos de um tema que nasceu com o Mundo - a Morte. Todos os presentes emitiram opiniões, conceitos, teceram lôas, ou exprobrações, sob o ponto de vista científico, filosófico ou religioso de cada um. Todos, porém, acordes em encarar as conseqüências imediatas, positivas, da morte, no terreno material. Foram, então, aventadas hipóteses, figurações de casos concretos . . . A morte penetra num lar, colhe irremissivelmente um dos seus membros queridos. De ordinário, sucedem-se logo os prantos, as lamúrias dos parentes, o abalo e manifestações de pesar das pessoas amigas, o sepultamento . . . Depois, o vácuo deixado, às vezes imprenchível, no afeto dos que ficam, na vida de relação, na esfera social, doméstica ou profissional da pessoa falecida. Se é ela uma dona de casa, cuidadosa e de gosto, sentir-lhe-ão a falta as suas flores, as folhagens da varanda, que talvez ficarão, durante dias, esquecidas, sem tratamento. Os móveis, que viem em simbiose com o seu cantinho exclusivo, o seu ambiente, são quase sempre arrancados dele por mãos estranhas, indo tomar os lugares de outros . . . Se ficou uma criancinha mimada, que já fala e anda, de momento em momento perguntará pela mamãe, aonde foi ela, porque foi sozinha, porque demora tanto . . . ë então que se sucedem as mentiras piedosas, embaladoras. “Mamãe foi passar uns dias em casa da vovó, não levou o filinho querido porque lá existem cães de dentes afiados, que mordem crianças . . . Quando ela chegar de volta dará no filhinho um beijo demorado, depois lhe entregará bombons, um boneco que assobia, um cavalo com asas . . . “ “Mamãe foi ao céu buscar uma estrela para o filinho, está demorando porque os anjos da altura lhe ficam pedindo que conte histórias da terra . . . “ Se a vítima da morte é um homem público, um funcionário atencioso e, serviçal, a figura preferida dos que batem à porta da repartição, há um desequilíbrio, uma ruptura de hábitos, desapontamentos às vezes, entre os que desconheciam a morte do servidor, e o seu substituto. Este, embora seja muitas vezes um elemento à altura, terá que passar por um período razoável de ambientação, com as funções e com o público . . .
No terreno a que chegou a conversação, foi logo lembrado o nome do saudoso Edward Leão. E um dos presentes disse que se ele estivesse vivo, faria anos no dia 26 de abril. E falamos todos de Edward Leão, com saudade.
Saímos dali, pensando em escrever alguma coisa a respeito do grande amigo desaparecido. Lembrança sempre oportuna, e agora mais oportuna ainda. Sim. Porém, como escrever ? E por onde começar ? Quem conviveu com Edward Leão, como nós; quem, no festim da vida, se serviu do pão da sua amizade lustral, diante da sua lembrança, diante da reconstituição mental do que ele foi, logo se lembra também desses edifícios que sobem para o céu e que, só 1a distância, podem ser vistos em toda a sua grandeza.
O poeta e filósofo católico Murilo Mendes, pôs a nu em dezessete longos artigos de jornal a sua cultura e sentimento, dissecando a obra poética, artística, ascética, do seu êmulo em cultura e sensibilidade, e seu grande amigo, falecido, Ismael Nery. Após a leitura dos referidos estudos, vazados num estilo envolvente, borrifado de poesia, concluímos que existem vários pontos de identidade entre Ismael Nery e Edward Leão, - na obra poética e filosofia da vida de ambos. Mas acontece que não somos Murilo Mendes . . . Edward Leão, porém, é um grande tema.

o o o.

São as primeiras palavras do poeta português Antônio Ferro, na sua “A Arte de bem morrer” : “A Vida é o curso superior da Morte. Durante a vida deve aprender-se, apenas, a morrer. Inspirando-nos no citado poeta, poderemos dizer que Edward Leão consumiu a vida fazendo com brilhantismo o se curso superior da Morte, a sua prova – concurso para a Eternidade. Individualidade que se mostrava por diversas facetas, - jornalista, poeta, educador, músico, “causeur”, orador, serventuário de justiça, chefe de família e cidadão, em tudo isso encontrava ele material para o seu grande aprendizado. E era ainda uma voz autorizada, o conselheiro prudente e sábio de todas as emergências. Desdobrava-se, repetimos, em múltiplas atividades, e a todas elas se entregava com dedicação, com afã, como quem tem o temo marcado para realizar uma grande tarefa . . . E sempre incansável. Consumia-se, mas não capitulava. Como o soldado mortalmente ferido, que se arrasta até à barricada a fim de dar o último disparo, o serventuário, já muito doente, ia sempre ao Fórum, em heróicas tentativas de reação contra a moléstia. Por fim, não podendo mais resistir, e sempre procurando esconder a amargura, começou a aparecer mais raramente, como se estivesse aos poucos se despedindo de nós, ou a fim de que, insensivelmente, nos fôssemos nos desacostumando do seu convívio. Por esse tempo, também, à custa de sobre-humanos esforços, ainda aparecia nas aulas, onde ministrava as últimas lições aos seus queridos alunos.
Em seu leito de sofrimento, mesmo nas horas mais cruciantes, sempre se mostrou cordial, sereno, resignado . Sempre recebia com um sorriso os amigos que o iam visitar. Ocasiões dolorosas em que os amigos, diante de uma vida preciosa, que se consome inexoravelmente , ainda tentam enganar-se, tentam enganar, fantasiando melhoras que não existem. . . O doente dava às vezes a impressão de já sentir a mente mergulhada noutras esferas, o olhar vago, numa passividade mística . . . Espiritualizava-se, abeirava-se do Absoluto.
Um mês, mais ou menos antes, estivera durante algum tempo em tratamento na Capital Mineira, de onde, após obter sensíveis melhoras, voltava, dizendo que não mais sairia a fim de medicar-se. Aqui chegou cheio de esperanças, que se propagaram à família e aos amigos, porém tais melhoras foram passageiras. Alguns dias antes do fim, foi de novo levado para Belo Horizonte, tendo sido a sua última viagem, que se processou na realidade e no sonho . . .
Naquela cidade, cercado dos recursos possíveis da Ciência, assistido pela família extremosa e alguns amigos, e após receber os últimos Sacramentos da Igreja Católica, entregou-se `morte, dignamente como vivera, serenamente . . . Era uma vida que, no terreno físico, se perdia na Grande Noite, depois de ter servido de farol a tantas vidas.

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Edward Leão há de ser sempre lembrado, como chefe de família, como funcionário público, como professor, como poeta . . . Idealista e sonhador, pontificava e ensinava, resplandecente de satisfação e com o espírito voltado para o futuro. Consumiu grande parta da sua existência, na difícil tarefa de insuflar conhecimentos na mocidade de Raul Soares. E abrasado desse divino propósito, nele persistiu até o fim, até não mais resistir, entregando-se em holocausto . . .
Foi ele um grande poeta, culto e sentimental. Sua obra poética, bastante vasta, embora dispersa, modelada nas duas escolas de que foram os principais expoentes - Bilac e Cruz e Souza, há de ficar na nossa lembrança , e constituirá um dos maiores acervos da cultura e sensibilidade desta terra. Sentimos não haver espaço para a transcrição de alguns versos, que mostram as alturas a que o transportava a sua inspiração !
Dotado de cultura geral, tinha uma expressão fácil, copiosa e envolvente. Se entrávamos às apalpadelas num assunto qualquer, ele, notando logo tal situação modestamente, e com habilidade, se esgueirava até atingir o assunto, dominava-o, dissecava-o até ao âmago.
Depois da morte de Edward Leão, em vista do que dizem algumas das suas poesias, e em vista de reminiscências de conversa, concluímos que ele, uns dois ou três anos antes, tivera pressentimento do quanto lhe restava de vida. Por várias vezes, durante uma conversação, e mesmo quando falava em público, repetia frases ais ou menos como esta : “ Amanhã, quando eu for apenas uma lembrança . . . “ E punha nas palavras uma tristeza, como se referisse ao dia seguinte, e não a um amanhã do futuro distante.
Aquele grande amigo, supomos deve ter morrido intimamente feliz. Pôde ver o desabrochar de diversas flores, no extenso viveiro tratado por suas mãos. Deixou um sem número de discípulos, normalistas e contadores. Entre os seus inumeráveis alunos, contam-se advogados, médicos, farmacêuticos, etc., todos desta terra, inclusive dos seus dois filhos, sendo um deles um dos grandes causídicos do nosso Foro, e o outro,, tabelião e digno substituto seu, que já o era antes da sua morte, embora não o fosse em caráter definitivo como agora. Ambos finos intelectuais, como que trazendo estampado na carne o selo indelével de origem . . .
Não somos materialistas. Como o saudoso Edward Leão, cremos nas belezas eternas, cremos em Deus, cremos na vida futura, cremos nos prêmio pelas boas obras. E ele, que, como pôde, se entregou, em partículas do seu ser, a Raul Soares e ao seu povo; ele que sempre foi um espírito generoso, que sempre viveu de acordo com os princípios cristãos e sempre temente a Deus, ele há de estar recebendo, na vida eterna, de acordo com o seu sacrifício. É o que nos diz a nossa crença. E seja ele, hoje, flor, estrela, céu, poesia, música, ou simplesmente alma, ou simplesmente um reflexo do Eterno, nós, nos descobrimos diante da lembrança de Edward Leão.

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