sábado, 29 de março de 2008

A Rosa e a Estrela

Comentário

“A Rosa e a Estrela” o Prof. Edward Leão dedicou à esposa, uma mulher de acrisoladas virtudes; uma boa companheira e mãe extremada.
O poeta, como já vimos em outra oportunidade, teve a influência da Escola Parnasiana. Evidenciaram-se como cultores do parnasianismo no Brasil: Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Francisco Júlio e outros renomados poetas. Como uma de suas características os poetas brasileiros não conseguiram, como os portugueses, aquele indiferentismo, aquela impassividade diante da emoção, preconizada pela escola. Preocuparam-se com a forma, as rimas, a versificação, ficando românticos, sentimentalistas no assunto.
No poema deparamos uma palavra incomum: Ancenúbio, considerado um neologismo desnecessário, engendrado por Castro Lopes ( médico e literato brasileiro, grande latinista) para substituir o francesismo nuance. Não ganhou vulgaridade.

JGL

A ROSA E A ESTRELA


No nobre e velho parque abandonado,
entre ruínas de heráldico passado,
uma rosa vermelha,
fúlgida se assemelha
à rainha orgulhosa,
esplêndida, formosa,
a dominar à força de beleza
a estesia imortal da Natureza.

Em meio de raquíticos vassalos,
magnifica e sublime a domina-los,
primeira entre os primeiros
tesouros dos canteiros,
soberana se ostenta
e às vezes aparenta
Lábios sangüíneos que o desdém descerra
ante a inveja floral de toda a Terra.

No vasto firmamento alto e profundo
- clâmide azul aberta sobre o mundo –
uma estrela fulgura
- claro riso da altura,
alacre e cristalino -
como um farol divino
ou um cálice de bênçãos luminosas
a gotejar no cálice das rosas.

Ela empana o fulgor das companheiras,
pois, é também primeira entre as primeiras
no lúcido cenário,
seu brilho extraordinário
Que trêmulo palpita
é uma asa que se agita
pulverizando pelo espaço em fora
claridades balsâmicas de aurora.

Olhando a estrela a rosa se entristece
e diz-lhe baixo como numa prece:
- Formosa estrela, o teu fulgor radiante
põe ancenubios de oiro e de diamante
na minha tez de seda e de veludo.
Mas, sinto que invade um tédio mudo,
um desejo esquisito de brilhar,
de Ter cintilações, de fulgurar
e de resplandecer como uma gema,
ser dos jardins um lúcido diadema.
O’ - falena de luz - desce no espaço,
vem poisar no meu cálido regaço!
Serás o espírito - a alma de uma flor,
serei a carne - o corpo de um fulgor.

Por muito tempo a estrela estremeceu
e, por fim tristemente, respondeu:
- O’ flor, eu vi num rápido momento
como é universal o sofrimento,
quantas vezes eu quis descer à Terra,
pesquisar o mistério que se encerra
na corola das flores olorosas,
ter vida e Ter perfume como as rosas,
ter os beijos do sol, quente e fecundo
e andar de colo em colo pelo mundo.
Mas, ai, querida irmã, como é infinita
A Dor universal. Em mim palpita
uma ânsia igual a que te faz sofrer,
sou alma e nunca poderei descer -
E’s corpo e nunca poderás subir.

O astro parou instantes de luzir,
depois voltou e pálido, apagado,
como um rosto depois, de ter chorado,
olhou e viu em pétalas no chão
desfeita a linda flor. A estrela, então,
sentindo ainda maior a sua dor,
exclama, em voz tremente, para a flor:
- Bem mais feliz tu foste, ó rosa amiga,
o meu destino exige que eu prossiga
na rota do infinito. O corpo morre . . .
e tu morreste. O espírito percorre
todas as direções da Eternidade.
Só me resta de ti grande saudade,
pobre amiga gentil. Eu fico ainda.
A minha sorte é triste e eterna, infinda:
Serei por sempre lúcida, imortal,
como o fantasma da Ânsia Universal.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário


O poema “Alma Errante” deu nome a um dos livros do Prof. Edward Leão, impresso com muito gosto em agosto de 1932 pela Typographia Americana, do saudoso Nicolau Simas. Uma curiosidade: A Typographia Americana é certamente a mais antiga empresa em funcionamento em Raul Soares. Fundada em 1925, ainda hoje presta relevantes serviços á região, sob a direção de Evaldo Simas, que sucedeu ao pai. Agora, evidentemente, mais moderna e sob a denominação de Artes Gráficas Americana.
Em “Alma Errante” deparamos dois momentos: “Horas de amor e de melancolia”: - uma generalização; e “eu vejo tudo e sinto a imensidade” : - uma individualização.
Forte influência da Escola Parnasiana e da Escola Simbolista estão presentes. Transcende cultura em “subir no carro esplêndido de Apolo”, o deus grego e romano dos oráculos, da medicina, da poesia e das artes, dos rebanhos, do dia e do sol, também chamado Phebo, e em “qual novo Ahasverus arrastando o fado”. Ahasverus, também chamado Ahasvero, personagem lendária, mais conhecida pelo cognome de Judeu Errante.
A psicologia contida na obra machadiana; as indagações e dúvidas sobre o íntimo das coisas e das pessoas, impregnam em muitos momentos a obra do mestre Edward Leão, a grande expressão cultural de Raul Soares.

JGL


ALMA ERRANTE


Curvas longínquas . . . montes altaneiros
- Rodovias do Sonho e da Ilusão -
Abismos negros . . . báratros traiçoeiros
em que se engolfa incauto o coração.
Soberbos alcantis . . . despenhadeiros
Fortes, cheios de ameaça e de atração,
Espaço imenso . . . trilhos condoreiros
- Caminho aéreo da imaginação -

Ninhos de águia na excelsa majestade
dos mais augustos sólios da realeza
Vzinhos naturais da tempestade
Altos arranha - céus da Natureza.
Vozes de aves, que em doce alacridade
gorjeiam carmes lindos na devesa . . .
Pios tristonhos . . . nenias de saudade
na música dolente da tristeza . . .

Serpentes líquidas, répteis coleantes
- Artérias d’água abertas sobre a terra
mares e oceanos, quérulos gigantes,
plangendo a magoa que seu bojo encerra.
Pepitas de ouro . . . minas de diamantes
- Astros que a picareta desenterra -
rubis sangüíneos . . . gotas borbulhantes
das veias inorgânicas da terra.

Edênicas miragens policromas
formam quadros de efeitos deslumbrantes,
miscelânea de cores e de aromas
Num cenário de múltiplos cambiantes.
Trancos enormes, majestosas comas,
ao sabor de galernos sussurrantes . . .
feras ligeiras, sacudindo as pomas
chamam os filhos prófugos, distantes.

Esplendidas manhãs . . . deslumbramentos
de cor na luz mirífica do dia . . .
Penumbras vesperais . . . . recolhimentos . . .
Horas de amor e de melancolia.

Eu vejo tudo e sinto a imensidade
Desse infinito que me envolve a Vida
- Teia de fios forte da Verdade
pelas mãos da quimera entretecida -
e sinto em mim indômita vontade
de subir, voar, levando de vencida
a força etérea, a lei da gravidade
e toda a ciência velha, encanecida.


Oh ! Quem me dera erguer deste solo,
desta galé fatal que me agrilhoa,
subir no carro esplendido de Apolo,
e pelo mundo jornadear à-toa.
E tenho a sensação de que me evolo
numa quimera eternamente boa,
alado a transitar de polo a polo
na delícia suprema de quem voa.


Fora do mundo real a que pertenço,
desagregado da matéria ingrata,
eu sinto o meu espírito suspenso,
ruflando as asas rútilas de prata.
Ascendo às grimpas desse espaço imenso,
Onde minh’alma louca se arrebata
e abrange o mundo num olhar intenso
nesse delírio de nefelibata.


Minh’alma é inquieta, nômada, erradia,
qual novo Ahasverus arrastando o fado,
vai á mercê de doida fantasia
correndo atrás de um sonho irrealizado.
- Alma errante, sedenta de harmonia,
busca no espaço um páramo encantado
- Região de luz, de lenda ou de magia
onde poisar teu sonho incontentado !


Marcha, minh’alma, cumpre o teu destino :
Galga e supera os cumes de granito !
Singra o azul como um facho peregrino
- Asa de luz brilhando no Infinito -

quinta-feira, 20 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário

No poema “Felicidade” o mestre filosofa, analisa e perscruta o íntimo da alma humana. Conclui que a felicidade “não promana de externas influências. Nem se nutre de vãs reminiscências. Vive conosco, ignota, ocultamente, incógnita, latente, como um bacilo dentro do organismo. Ri do nosso ceticismo”. Presente está no equilíbrio da faculdade humana. É individual. Nem sempre o prazer de alguém se encontra onde o prazer alheio se manifesta. E dominado por estranho império o homem pode ser levado ao choro num salão de festa e tem vontade de rir num cemitério.
Convido os leitores a penetrar no mundo mágico do pensamento do mestre Edward Leão.

JGL


FELICIDADE

Num êxtase, minh’alma se liberta
do corpo que a detém. Caminha incerta
e vacilante pela treva densa.
Sente-se só dentro da noite imensa.
Ouve vozes confusas. Vê lampejos
esquisitos que fulgem como beijos
de gênios invisíveis. As estrelas,
já perdendo o fulgor, quase amarelas
- Topázios engastados em turquesa -
Lançam clarões dormentes de tristeza
no torpor cataléptico do mundo.
Num grande sonho mórbido, profundo,
a Natureza dorme. Minh’alma forte,
ante esse quadro apático de morte,
exulta e vibra de alegria franca.
É como a asa de uma pomba branca,
sozinha a palpitar na escuridão.
Na paz nirvânica da solidão,
dentro da sombra e dentro do mistério,
recorda Hamlet em pleno cemitério,
louco, a filosofar entre caveiras,
analisando as vidas passageiras
consumidas ali. Assim minh’alma,
perambulando a sós na noite calma
nos intermúndios do Desconhecido,
segue um desejo louco indefinido,
de buscar através das negras sombras,
como se busca um fruto nas alfombras,
em vez dos ossos lívidos de um crânio
que se arrancam de um fosso subterrâneo,
a forma viva, nítida, real,
dessa incógnita eterna, universal,
miragem de mil modos concebida,
razão de ser, estímulo da vida,
que a gente pensa sempre ter deixado
numa curva longínqua do Passado,
mas que se espera ver a cada instante,
como a sombra que vemos sempre adiante,
inatingível, lépida, ligeira,
fugindo na vertigem da carreira -
ou a falena de oiro refulgente
atrás da qual corre eternamente
sem nunca se alcançar . . . Felicidade !
- Visão antiga envolta na saudade,
incorpórea, invisível, abstrata,
sem forma certa e sem figura exata -
ou borboleta esquiva, fugidia
- bizarra concepção da fantasia -
voejando de ilusão em ilusão
no espaço imenso da imaginação.
O desvario do êxtase domino
eis que lentamente raciocino
e verifico que a Felicidade
não é uma conquista da Vontade,
mas é fenômeno intimo, inconsciente,
que não se pode achar no meio ambiente
nem se produz no mundo exterior,
mesmo no encanto magico do amor
ou no apogeu mirífico da glória
ela é sempre falaz e transitória.
Promana de externas influências
nem se nutre de vãs reminiscências.
Vive conosco, ignota, ocultamente,
dentro de nós, incógnita, latente,
como um bacilo dentro do organismo.
Ela se ri do nosso ceticismo.
Como no oceano a pérola se esconde,
ela se oculta não sabemos onde
dentro do nosso ser. No entanto, inquieta,
pobre hermeneuta, humílima exegeta,
a nossa conturbada inteligência
quer decifrar o enigma da existência,
mas vai sem bússola 1a mercê da sorte,
indo esbarrar, exânime, na morte.
O homem assiste ás lutas sucessivas
de suas próprias forças subjetivas
e não pode intervir. Quer ser feliz.
Cria e refina os gozos mais sutis,
engolfa o espírito na ciência e na arte,
busca a Felicidade em toda a parte.
Ai ! deixasse ele de indagar a esmo
e procurasse-a dentro de si mesmo !
Pois a Felicidade é em nós que existe
e sei que ela simplesmente consiste
no equilíbrio de nossas faculdades,
na harmonia e na paz das entidades
várias e múltiplas de nosso ser,
nem sempre achamos íntimo prazer
onde o alheio prazer se manifesta.
Pois o homem chora num salão de festa
E, dominado por estranho império,
tem vontade de rir num cemitério.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário

Em “Heróis e Precursores” o Prof. Edward Leão adotou o pseudônimo “Erasmo Lírio”. Lirismo, poesia e solidariedade humana, encontram-se no bem urdido texto do incomparável mestre.

JGL


HERÓIS E PRECURSORES

O avião prateado passou como torpedo aéreo, ressonando forte no seu leito de nuvens.
Sonâmbulo dos ares, autômato das alturas, parecia não ter destino certo. Era como um mundo fechado, em movimento. Nas suas entranhas palpitavam vidas inseguras, trêmulas, no espasmo da aventura. O planeta artificial , no equilíbrio mecânico do seu organismo metálico, voava indiferente às emoções dos passageiros. Astro motorizado, dirigido pela técnica de um piloto terrestre, a aeronave era bem um símbolo do panorama cósmico do século: o pigmeu inteligente cavalgando os elementos misteriosos da natureza, fustigando-os com o chicote do seu poder científico. No esfulizar meteórico daquela máquina, dois extremos conjugados no âmbito exíguo de uma cabine expõem a síntese da vida de uma época. Ali dentro se cruzam o poder supremo e a impotência absoluta; o animal empunhando o facho da razão - o homo sapiens - forte como o rei, na soberania imensurável do universo, ostentando a coroa dos mundos, com a arrogância suprema de um caudilho dos espaços, e trêmulo de medo, mesquinho e insignificante na covardia dos nervos em permanente vibração, à mercê das circunstâncias, frágil boneco de carne nas mãos do imprevisto, à espera dos próximos minutos e do seu cortejo misterioso de surpresas incontroláveis. Maravilha do século, milagre do gênio humano, prodígio da técnica e da mecânica, vendo-o assim, no vôo rotineiro por rotas aéreas invisíveis e abstratas, convencionalmente traçadas a lápis ou a nanquim num retalho de papel quadriculado, evoco a figura esquisita daquele Alberto Santos Dumont, com o seu chapéu desabado e o seu colarinho alto de duas peças, pilotando a sua Demoiselle em plena Cidade-Luz, elevando acima da Torre Eiffel o nome modesto da sua pátria, que não quis ou não pôde auxiliá-lo. E, seguindo-o, respeitosos e patrioticamente inflamados de júbilo os seus frustrados precursores, Augusto Severo e Padre Bartolomeu de Gusmão, formando um triângulo de asas de ouro nas alturas, dentro do qual resplandece como um sol de glória, o nome do Brasil.
Como uma estrela candente, fugitiva e rápida, o avião desaparece nas nuvens longínquas. Esvaem-se no espaço as imagens que se formaram em minha comovida evocação. Ouço ainda o ruído dos motores, como uma prolongada mensagem de progresso que acaba de passar.
À distância, a silhueta argentina do veículo aéreo se assemelha agora, cintilando aos beijos do sol, a um peixinho de prata, nadando nas águas cinzentas de um oceano de éter.
Além, num aeroporto qualquer, corações humanos palpitam à sua espera. Dentro dele pela radiotelegrafia das emoções, outros corações recebem afetuosos votos de boas-vindas, na linguagem silenciosa com que almas se comunicam.
E eu, sem saber porque, talvez tocado pela centelha divina do amor ao próximo, volto os olhos para as profundezas do firmamento e formulo uma prece muda ao supremo Senhor de todos os destinos, pela felicidade e segurança daquela gente que passou nos ares - meus muito amados irmãos desconhecidos.

domingo, 9 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário

Sob o pseudônimo de Fígaro, o Prof. Edward Leão relata na coluna jornalística “Fio de Navalha”, com muita graça e sutileza, as atribulações de Bonifácio, “Um Chefe de Família”, e a sua tempestuosa e enérgica mulher D. Genoveva e uma filha fogosa e evoluída - Angélica. Se fictícias ou verdadeiras as personagens não tenho condições de lhes dizer. O que se pode afirmar é que, nos dias de hoje, ainda maiores são os problemas dos bonifácios.

JGL

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Bonifácio estava, naquele dia, por conta de “si próprio”. A atmosfera doméstica estava carregadíssima. Nuvens negras e ameaçadoras sombreavam a fronte de D. Genoveva, prenunciando tempestades. E ele, o coitado do Bonifácio, sabia como eram aquelas tempestades. Ao contrário do que acontecia nas casas alheias, quando torrentes de palavras inundavam o silêncio dos lares nas horas de borrasca, limpando o ambiente e desanuviando os céus, alí, no pacatíssima recanto onde residia o Bonifácio , não havia palavras, nem gritos, nem explosões. Era o silêncio, o silêncio pesado e profundo dos cemitérios à noite; o silêncio enervante e terrível das catacumbas fechadas. D. Genoveva era assim. Esmagava o Bonifácio com o seu silêncio, com a impassibilidade de um mutismo completo e absoluto.
Naquele dia, o Bonifácio, sempre afoito e irrefletido, dissera incautamente umas palavras perigosas: balbuciara a medo um esboço de opinião sobre um assunto em que só ela devia pontificar: o namoro da filha, a Angélica, cujos modos nem sempre condiziam com prenome que usava. Ele tivera o atrevimento de voltar os olhos, quando passava, para o vão da porta, onde ela e o Inocêncio conversavam. Vira-os aconchegados, tão juntinhos, que pareciam xipófagos. Estremecera. Aquilo não estava direito. Era preciso avisar a Genoveva, abrir-lhe os olhos diante do perigo, mostrar-lhe os riscos daquela liberdade demasiada que abria caminho escorregadio às débeis e titubiantes virtudes da filha. D. Genoveva franziu os supercílios e enrugou a testa luzidia. Bonifácio tremeu dos pés à cabeça. Virou um feixe de varas verdes. Por que fizera aquilo? Ele mesmo reconheceu imediatamente a gravidade da afronta que fizera à esposa. E saiu como um cão medroso ante o olhar repreensivo do dono. D. Genoveva não o perdoaria jamais. Consignaria para sempre no débito de sua conta - corrente aquele lance de audácia heróica, que ela interpretava como o maior, como o mais insuportável dos desaforos. E ele leu, então, trêmulo e emocionado, nas rugas expressivas, que se destacavam na fronte da mulher, como sinais hieroglíficos, as seguintes palavras de justa censura: “A Angélica é uma moça moderna; não pode namorar à moda antiga, como uma caipirinha qualquer. Você não tem o direito de espioná-la”. O pobre do Bonifácio acabou de sair. Na rua, sentiu uma reação, um assomo de revolta. Teve vontade ir ao bar, de beber muito. E foi, mas não bebeu, porque teve medo de que D. Genoveva lhe lançasse aquele olhar forte como chama de maçarico que, um dia, era capaz de cremá-lo vivo para que ela, depois, lhe varresse as cinzas para o caixote do lixo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário


Nos anos 50 o Prof. Edward Leão escrevia a coluna “Fio de Navalha”, sob o pseudônimo de Fígaro, dando-lhe o subtítulo de “Coisas de Ontem”. Com a sua notória e habitual capacidade e competência de narrador relata no texto a seguir transcrito as vicissitudes do povo num momento conturbado da história política brasileira.

JGL

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Finda a revolução de Outubro, empossada a Junta Revolucionária e, em seguida, o Governo Provisório, o país foi entrando nos eixos.
Nos municípios, a governança comunal caberia a prefeitos nomeados pelos Interventores. Espalharam-se papeluchos que valiam como dinheiro. Eram uns retângulos de cartolina semelhantes a bilhetes de rifa. O povo denominou-os burrosquês e alguns explicavam a sua etimologia curiosa: “burros os que aceitam”.
Dois anos se passaram sob o novo regime. Ditadura suave, tolerante, quase democrática. Em muitos municípios, surgiram prefeitos rotulados de técnicos. Eram engenheiros do Estado, encarregados da administração de comunas, sob as vistas de um departamento especializado criado pelo Governo Estadual. Poderes centralizados; orientação discricionária. Algum progresso promovido pelos administradores - funcionários, que eram removíveis e demissíveis ad - nutum.
9 de julho de 1932. Revolução em São Paulo. O grande Estado líder tomara dianteira na luta pela constitucionalização do país. Fê-lo pelas armas, numa arremetida heróica, pontilhada de lances de assombrosa bravura.
O Governo Central estava forte, porém, e convocou recursos humanos de todos os outros Estados da Federação para jugular o movimento. Minas se colocou à frente da reação e mandou os seus soldados para o Túnel. Os municípios desguarnecidos criaram uma espécie de guarda municipal (milícia), arrebanhando elementos no seio do povo. Deu-lhes armas e privilégios. Os milicianos, na sua maioria, usavam e abusavam desses privilégios, provocando mesmo, em algumas cidades, sérios conflitos de conseqüências mais ou menos graves. Na cidadezinha em que morávamos, porém, um impacto feriu o silêncio e a monotonia da vida citadina:- um ônibus, cheio de soldados, entrara na cidade, e um sussurro fez estremecer os simpatizantes da causa paulista. O autor destas linhas, que também ouvia às escondidas o único rádio existente na terra, devia estar no índex. O melhor expediente era fechar hermeticamente as portas e as janelas de nossa casa. “Quem não é visto, não é lembrado”, diz o antigo rifão.

domingo, 2 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário


Sob o pseudônimo de Fígaro o Prof. Edward Leão, na festejada coluna “Fio de Navalha” - “Coisas de Ontem”, publicada no jornal “O Imparcial”, exercita a sua condição de historiador relatando episódios revolucionários dos anos 30.

JGL

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O veículo fantasma percorreu as ruas da cidade, recolhendo pseudo – criminosos. Todo aquele que, por princípio, por simpatia e coerência, se inclinava para a causa dos paulistas era considerado um delinqüente e devia ser punido. Muitos cidadãos, velhos e moços, experimentaram a amargura da humilhação.
Naquele dia fatídico, devia realizar-se uma festa com fins beneficentes no salão do prédio recém - construído do Hospital São Sebastião. Severino Buetemuller, moço cheio de entusiasmo, inteligente e dinâmico, preparara tudo para que a festa fosse brilhante. Aquele engenheiro nordestino, que chefiava o 1º Distrito de Terras do Estado, desdobrava-se numa faina impressionante, numa operosidade singular, numa capacidade de organização “mais única do que rara”, quando tomava a frente de qualquer iniciativa.
Todavia, daquela vez, vimo-lo descoroçoado e triste, prenunciando o fracasso da grande festa e lamentando sinceramente os acontecimentos do dia, embora fosse ela, pessoalmente e sem rebuços, um apaixonado pela causa da ditadura. Era um grande coração que cessou de bater, precocemente, há alguns anos, quando chefiava as obras gigantescas da construção do Porto de Imbutiba, no Sul do Brasil.

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1º de janeiro de 1933. Um telefonema da cidade vizinha que nos fornecia energia elétrica transmitiu-nos a estarrecedora novidade: estávamos às escuras, definitivamente às escuras, irremediavelmente às escuras. Não seria fornecido nem mais um único quilowatt. Só se viam nas ruas pessoas apressadas, carregando lamparinas, lampiões, garrafas de azeite e caixas de grizetas. Mobilizavam-se os habitantes da cidade contra a ofensiva em massa do inimigo que, de há muito, fazia incursões de reconhecimento e realizava pequenas escaramuças em nossos acampamentos : as trevas.
Verdadeiros exércitos de sombras iriam ocupar as ruas e praças daquela cidade, transformada, de um momento para outro, em cabeça de ponte, em cidadela estratégica para os tenebrosos invasores.
Mas, como compensação, na hediondez daquele período negro, descia, de vez em quando a asa branca do luar, alvejando a paisagem e pulverizando poesia na alma dos moços, gotejando saudade no coração dos velhos.