domingo, 9 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário

Sob o pseudônimo de Fígaro, o Prof. Edward Leão relata na coluna jornalística “Fio de Navalha”, com muita graça e sutileza, as atribulações de Bonifácio, “Um Chefe de Família”, e a sua tempestuosa e enérgica mulher D. Genoveva e uma filha fogosa e evoluída - Angélica. Se fictícias ou verdadeiras as personagens não tenho condições de lhes dizer. O que se pode afirmar é que, nos dias de hoje, ainda maiores são os problemas dos bonifácios.

JGL

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Bonifácio estava, naquele dia, por conta de “si próprio”. A atmosfera doméstica estava carregadíssima. Nuvens negras e ameaçadoras sombreavam a fronte de D. Genoveva, prenunciando tempestades. E ele, o coitado do Bonifácio, sabia como eram aquelas tempestades. Ao contrário do que acontecia nas casas alheias, quando torrentes de palavras inundavam o silêncio dos lares nas horas de borrasca, limpando o ambiente e desanuviando os céus, alí, no pacatíssima recanto onde residia o Bonifácio , não havia palavras, nem gritos, nem explosões. Era o silêncio, o silêncio pesado e profundo dos cemitérios à noite; o silêncio enervante e terrível das catacumbas fechadas. D. Genoveva era assim. Esmagava o Bonifácio com o seu silêncio, com a impassibilidade de um mutismo completo e absoluto.
Naquele dia, o Bonifácio, sempre afoito e irrefletido, dissera incautamente umas palavras perigosas: balbuciara a medo um esboço de opinião sobre um assunto em que só ela devia pontificar: o namoro da filha, a Angélica, cujos modos nem sempre condiziam com prenome que usava. Ele tivera o atrevimento de voltar os olhos, quando passava, para o vão da porta, onde ela e o Inocêncio conversavam. Vira-os aconchegados, tão juntinhos, que pareciam xipófagos. Estremecera. Aquilo não estava direito. Era preciso avisar a Genoveva, abrir-lhe os olhos diante do perigo, mostrar-lhe os riscos daquela liberdade demasiada que abria caminho escorregadio às débeis e titubiantes virtudes da filha. D. Genoveva franziu os supercílios e enrugou a testa luzidia. Bonifácio tremeu dos pés à cabeça. Virou um feixe de varas verdes. Por que fizera aquilo? Ele mesmo reconheceu imediatamente a gravidade da afronta que fizera à esposa. E saiu como um cão medroso ante o olhar repreensivo do dono. D. Genoveva não o perdoaria jamais. Consignaria para sempre no débito de sua conta - corrente aquele lance de audácia heróica, que ela interpretava como o maior, como o mais insuportável dos desaforos. E ele leu, então, trêmulo e emocionado, nas rugas expressivas, que se destacavam na fronte da mulher, como sinais hieroglíficos, as seguintes palavras de justa censura: “A Angélica é uma moça moderna; não pode namorar à moda antiga, como uma caipirinha qualquer. Você não tem o direito de espioná-la”. O pobre do Bonifácio acabou de sair. Na rua, sentiu uma reação, um assomo de revolta. Teve vontade ir ao bar, de beber muito. E foi, mas não bebeu, porque teve medo de que D. Genoveva lhe lançasse aquele olhar forte como chama de maçarico que, um dia, era capaz de cremá-lo vivo para que ela, depois, lhe varresse as cinzas para o caixote do lixo.

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