sexta-feira, 14 de março de 2008

Tributo á memória do mestre Edward Leão

Comentário

Em “Heróis e Precursores” o Prof. Edward Leão adotou o pseudônimo “Erasmo Lírio”. Lirismo, poesia e solidariedade humana, encontram-se no bem urdido texto do incomparável mestre.

JGL


HERÓIS E PRECURSORES

O avião prateado passou como torpedo aéreo, ressonando forte no seu leito de nuvens.
Sonâmbulo dos ares, autômato das alturas, parecia não ter destino certo. Era como um mundo fechado, em movimento. Nas suas entranhas palpitavam vidas inseguras, trêmulas, no espasmo da aventura. O planeta artificial , no equilíbrio mecânico do seu organismo metálico, voava indiferente às emoções dos passageiros. Astro motorizado, dirigido pela técnica de um piloto terrestre, a aeronave era bem um símbolo do panorama cósmico do século: o pigmeu inteligente cavalgando os elementos misteriosos da natureza, fustigando-os com o chicote do seu poder científico. No esfulizar meteórico daquela máquina, dois extremos conjugados no âmbito exíguo de uma cabine expõem a síntese da vida de uma época. Ali dentro se cruzam o poder supremo e a impotência absoluta; o animal empunhando o facho da razão - o homo sapiens - forte como o rei, na soberania imensurável do universo, ostentando a coroa dos mundos, com a arrogância suprema de um caudilho dos espaços, e trêmulo de medo, mesquinho e insignificante na covardia dos nervos em permanente vibração, à mercê das circunstâncias, frágil boneco de carne nas mãos do imprevisto, à espera dos próximos minutos e do seu cortejo misterioso de surpresas incontroláveis. Maravilha do século, milagre do gênio humano, prodígio da técnica e da mecânica, vendo-o assim, no vôo rotineiro por rotas aéreas invisíveis e abstratas, convencionalmente traçadas a lápis ou a nanquim num retalho de papel quadriculado, evoco a figura esquisita daquele Alberto Santos Dumont, com o seu chapéu desabado e o seu colarinho alto de duas peças, pilotando a sua Demoiselle em plena Cidade-Luz, elevando acima da Torre Eiffel o nome modesto da sua pátria, que não quis ou não pôde auxiliá-lo. E, seguindo-o, respeitosos e patrioticamente inflamados de júbilo os seus frustrados precursores, Augusto Severo e Padre Bartolomeu de Gusmão, formando um triângulo de asas de ouro nas alturas, dentro do qual resplandece como um sol de glória, o nome do Brasil.
Como uma estrela candente, fugitiva e rápida, o avião desaparece nas nuvens longínquas. Esvaem-se no espaço as imagens que se formaram em minha comovida evocação. Ouço ainda o ruído dos motores, como uma prolongada mensagem de progresso que acaba de passar.
À distância, a silhueta argentina do veículo aéreo se assemelha agora, cintilando aos beijos do sol, a um peixinho de prata, nadando nas águas cinzentas de um oceano de éter.
Além, num aeroporto qualquer, corações humanos palpitam à sua espera. Dentro dele pela radiotelegrafia das emoções, outros corações recebem afetuosos votos de boas-vindas, na linguagem silenciosa com que almas se comunicam.
E eu, sem saber porque, talvez tocado pela centelha divina do amor ao próximo, volto os olhos para as profundezas do firmamento e formulo uma prece muda ao supremo Senhor de todos os destinos, pela felicidade e segurança daquela gente que passou nos ares - meus muito amados irmãos desconhecidos.

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