T E M A
Comentário
Lirismo e poesia nesta página do poeta. Chocante pelo realismo em muitos momentos. Merece ser lida com atenção e analisados os seus conceitos. Muito forte a presença da personalidade intelectual do poeta, característica em seus trabalhos literários.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350- 000 -Raul Soares(MG)
Os passos ficam na poeira dormente da tarde. Os passos me levam em busca de um tema. A própria poeira é um tema, porém um tema frio e árido - coração esmagado pelos desesperos do mundo. O sol que morre, apopléctico, vomitando amargura, é um tema, porém um tema já devassado nos primeiros dias da criação. Adão, nas tardes do Paraíso, com os olhos perdidos no ocaso, murmurou poemas indefiníveis.
Os ventos passam pela estrada, tristes como cães mortos de fome. Os ventos são temas imperecíveis, em cujas asas se perderam os aedos antigos, asas que trouxeram panoramas futuros para os olhos dos profetas. Um vento terrível sobe dos livros santos, bem como das grandes epopéias da humanidade. Os ventos loucos conduzem perfumes, mas também conduzem pestilência . . .
Há um tema putrefato, uma ave esmagada no caminho, a qual servirá de pasto às trevas que vêm descendo . . . Surgem mendigos vaporosos, olhos baixos, e se afastam - temas ambulantes que não devem ser tocados, sangram como feridas . . .
Vem, enfim, o maravilhoso tema, a noite, a estranha noite. Tema irmão gêmeo do caos, atroz e fascinante, esconde mundos de luz sob as roupagens de breu. E a noite me estende as suas fronteiras como uma paisagem de cânticos . . .
No seio do tema grandioso, no seio da eterna noite, apaga-se a idéia de tempo, esboroa-se a fatalidade das distâncias. O passado e presente brincam enlaçados sobre as areias infinitas, por onde cameleiros passam contritos, em direção aos despenhadeiros da morte. Nos plainos de verdura: as rosas tomam formas humanas, e choram de pena dos anjos decaídos, os quais, ao fundo, agitam os restos de asas devoradas por serpentes de chama. Passam visões rodeadas de estrelas, enquanto notas esparsas vão se agrupando na sombra, elevando-se em cânticos dolorosos, nos quais as virgens delirantes mergulham numa antecipação da glória . . . Do grande tema brotam temas melífluos, resplandecentes, e me sinto um viajor solitário, perdido na treva, perdido na luz, no alto da montanha, de onde se irradiam todos os destinos . . .
domingo, 12 de abril de 2009
domingo, 22 de março de 2009
GONÇALVES DA COSTA
UMA IDÉIA LUMINOSA
Comentário
Você já teve a idéia de dar um passeio de olhos fechados? O tema inspirou o poeta. Deleite-se com a leitura do texto a seguir transcrito; um belo exercício de intelectualidade.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 – Raul Soares (MG)
Vocês já tiveram a idéia luminosa (excêntrica, dirão alguns) de dar um passeio de olhos fechados ? Digo-lhes que é maravilhoso. Antes de tudo, e para que não zombemos das leis naturais, devemos escolher um terreno plano e sem espinhos. Ao fecharmos os olhos, ouvimos logo um cântico leve, envolvente. É a voz do homem feliz, o que canta sem camisa . . . Após, nos sentimos ante a Cavalgada das Walquírias, os nossos pés tocam de leve o mundo sobre-humano de Wagner. O deus Odin estende-nos os braços . . . Uma neblina suave, feita de músicas daquele céu, vai borrifando e purificando as nossas almas. Há um marulho de delicadeza inexprimível . . . Estamos às margens do Volga ? Estamos às margens do Reno ? Estamos simplesmente no mundo das maravilhas de Wagner. Corpos volumosos, coleantes, se nos enroscam aos pés, carícias veludosas tolhem os nossos passos. Estaremos rodeados de serpentes ? Sim, porém inofensivas, por que as fadas brincalhonas lhes trocaram os dentes por flores. O hidromel nos vem aos lábios, depois a epiderme celeste das Walquírias . . . e somos levados por mundos mais encantadores ainda. Mas a descrição dessas viagens, embora vocês achem isso paradoxal, só poderá ser feita pela mesma pena com que Santa Cecília escreve no céu a letra dos seus hinos . . .
- - -
Se quiserem fugir por momentos do mundo real, desçam as cortinas dos olhos, lavem primeiro com sabão de rosas os cinco sentidos . . . Porém, ia-me esquecendo de esclarecer - o lugar mais propício para esses passeios encantados fica acima das nuvens, acima das aves doidas, lá bem no alto, pertinho da vida eterna.
Comentário
Você já teve a idéia de dar um passeio de olhos fechados? O tema inspirou o poeta. Deleite-se com a leitura do texto a seguir transcrito; um belo exercício de intelectualidade.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 – Raul Soares (MG)
Vocês já tiveram a idéia luminosa (excêntrica, dirão alguns) de dar um passeio de olhos fechados ? Digo-lhes que é maravilhoso. Antes de tudo, e para que não zombemos das leis naturais, devemos escolher um terreno plano e sem espinhos. Ao fecharmos os olhos, ouvimos logo um cântico leve, envolvente. É a voz do homem feliz, o que canta sem camisa . . . Após, nos sentimos ante a Cavalgada das Walquírias, os nossos pés tocam de leve o mundo sobre-humano de Wagner. O deus Odin estende-nos os braços . . . Uma neblina suave, feita de músicas daquele céu, vai borrifando e purificando as nossas almas. Há um marulho de delicadeza inexprimível . . . Estamos às margens do Volga ? Estamos às margens do Reno ? Estamos simplesmente no mundo das maravilhas de Wagner. Corpos volumosos, coleantes, se nos enroscam aos pés, carícias veludosas tolhem os nossos passos. Estaremos rodeados de serpentes ? Sim, porém inofensivas, por que as fadas brincalhonas lhes trocaram os dentes por flores. O hidromel nos vem aos lábios, depois a epiderme celeste das Walquírias . . . e somos levados por mundos mais encantadores ainda. Mas a descrição dessas viagens, embora vocês achem isso paradoxal, só poderá ser feita pela mesma pena com que Santa Cecília escreve no céu a letra dos seus hinos . . .
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Se quiserem fugir por momentos do mundo real, desçam as cortinas dos olhos, lavem primeiro com sabão de rosas os cinco sentidos . . . Porém, ia-me esquecendo de esclarecer - o lugar mais propício para esses passeios encantados fica acima das nuvens, acima das aves doidas, lá bem no alto, pertinho da vida eterna.
sábado, 7 de março de 2009
Gonçalves da Costa
Comentário
O trabalho que ora divulgamos é o último poema da série “Harpa sem Cordas” ou, simplesmente “Harpa”, do grande poeta mineiro, que conseguimos encontrar . São muitas as dificuldades para o completo levantamento da obra do poeta por ter sido toda ela publicada em jornais do interior de Minas. Perdeu-se no tempo, inexoravelmente. Não mais existem os jornais, nem arquivos dos mesmos. A ação do tempo é altamente predatória e em não havendo interesse na preservação da cultura, como infelizmente acontece no Brasil, pouco ou quase nada se pode fazer.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 000- Raul Soares (MG)
HARPA SEM CORDAS
(PÁGINA ÍNTIMA)
Pai ! Ao limite da grande trajetória, chegaste primeiro. Chegaste a um ponto que a miopia não me deixa distinguir. . .
A manhã longínqua, em que e puseste a caminho, devia ser muito clara, pois sempre foram claros os teus gestos, as tuas palavras. Eu sempre te via como mergulhado no sol . . .
Há muito que os medos olhos não pousam na tua figura palpável. Mas no meu afeto ela se eleva, ilumina-se cada vez mais.
Como a saudade diviniza o que já não existe. Pai ! Um simples movimento do teu vulto, colhendo espigas ou frutos entre as ervas do passado, é hoje para a minha sensibilidade o gesto de um santo recolhendo estrelas . . .
Podias estar caminhando junto de mim até hoje, meu Pai ! Mas Deus não quis que a tua viagem se prolongasse por mais tempo. . . Quando naquela madrugada distante, a névoa da eternidade envolveu os teus olhos, o grande relógio do tempo , que marcava os teus passos, havia dado apenas cinquenta e quatro pancadas, correspondentes a cinquenta e quatro anos -– luz . . . Livre daquela consunção invencível, estarias, então, apenas em meio da viagem, dada a tua primitiva fortaleza física. O certo é que te foste, naquele dilúculo de setembro, enquanto os passarinhos cantavam no arvoredo próximo.
Para que tentarmos folhear, aqui na terra, o livro do mistério, Pai ? Para que estendermos as mãos frágeis, tentando remover rochas que sobem para as nuvens ? Para que esperarmos resposta a perguntas que estão há milênios estendidas no ar ? . . .
Lembro-me, ainda, Pai, que um dia lemos juntos esta máxima oriental : “Vãs são as esperanças dos homens, diante dos decretos que o Eterno escreveu no céu em letras de fogo”. Tu leste, e suspiraste. É que, embora nunca perdesses a serenidade, tinhas quase a certeza de que o teu caso já era mais ma derrota da ciência . . .
Deus, que é todo misericórdia, leva-nos um ente querido, mas nos deixa a lembrança – espelho mágico, incrustado nas nossas almas. Sinto-te, Pai, povoando as minhas horas de recolhimento, sinto-te junto ás músicas prediletas que te embalavam, sinto-te nas cantigas dos pássaros, teus amigos dos campos de fartura. . .
Pai ! Minha fé, norteando a fantasia, te coloca nos altiplanos reservados aos bons, aos limpos de coração. Benção, alvorada, música, sentimento, és todo imperecível, eterno, na minha convicção e na minha lembrança.
Minha homenagem a ti, saudoso Pai, eu a estendo a todos ao Pais que, morrendo, se tornaram claridade, pelas suas ações e pelos seus exemplos.
É verdade, meu Pai, que os mortos governam os vivos “. E os que foram bons na terra, continuam sendo-o na eternidade, de onde enviam presentes aos vivos . . . Pelas noites nos meus exames de consciência, toda alegria que sinto, por uma boa ação que me ensinaste a praticar, é uma flor celeste que do alto me atiras dentro do coração.
O trabalho que ora divulgamos é o último poema da série “Harpa sem Cordas” ou, simplesmente “Harpa”, do grande poeta mineiro, que conseguimos encontrar . São muitas as dificuldades para o completo levantamento da obra do poeta por ter sido toda ela publicada em jornais do interior de Minas. Perdeu-se no tempo, inexoravelmente. Não mais existem os jornais, nem arquivos dos mesmos. A ação do tempo é altamente predatória e em não havendo interesse na preservação da cultura, como infelizmente acontece no Brasil, pouco ou quase nada se pode fazer.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 000- Raul Soares (MG)
HARPA SEM CORDAS
(PÁGINA ÍNTIMA)
Pai ! Ao limite da grande trajetória, chegaste primeiro. Chegaste a um ponto que a miopia não me deixa distinguir. . .
A manhã longínqua, em que e puseste a caminho, devia ser muito clara, pois sempre foram claros os teus gestos, as tuas palavras. Eu sempre te via como mergulhado no sol . . .
Há muito que os medos olhos não pousam na tua figura palpável. Mas no meu afeto ela se eleva, ilumina-se cada vez mais.
Como a saudade diviniza o que já não existe. Pai ! Um simples movimento do teu vulto, colhendo espigas ou frutos entre as ervas do passado, é hoje para a minha sensibilidade o gesto de um santo recolhendo estrelas . . .
Podias estar caminhando junto de mim até hoje, meu Pai ! Mas Deus não quis que a tua viagem se prolongasse por mais tempo. . . Quando naquela madrugada distante, a névoa da eternidade envolveu os teus olhos, o grande relógio do tempo , que marcava os teus passos, havia dado apenas cinquenta e quatro pancadas, correspondentes a cinquenta e quatro anos -– luz . . . Livre daquela consunção invencível, estarias, então, apenas em meio da viagem, dada a tua primitiva fortaleza física. O certo é que te foste, naquele dilúculo de setembro, enquanto os passarinhos cantavam no arvoredo próximo.
Para que tentarmos folhear, aqui na terra, o livro do mistério, Pai ? Para que estendermos as mãos frágeis, tentando remover rochas que sobem para as nuvens ? Para que esperarmos resposta a perguntas que estão há milênios estendidas no ar ? . . .
Lembro-me, ainda, Pai, que um dia lemos juntos esta máxima oriental : “Vãs são as esperanças dos homens, diante dos decretos que o Eterno escreveu no céu em letras de fogo”. Tu leste, e suspiraste. É que, embora nunca perdesses a serenidade, tinhas quase a certeza de que o teu caso já era mais ma derrota da ciência . . .
Deus, que é todo misericórdia, leva-nos um ente querido, mas nos deixa a lembrança – espelho mágico, incrustado nas nossas almas. Sinto-te, Pai, povoando as minhas horas de recolhimento, sinto-te junto ás músicas prediletas que te embalavam, sinto-te nas cantigas dos pássaros, teus amigos dos campos de fartura. . .
Pai ! Minha fé, norteando a fantasia, te coloca nos altiplanos reservados aos bons, aos limpos de coração. Benção, alvorada, música, sentimento, és todo imperecível, eterno, na minha convicção e na minha lembrança.
Minha homenagem a ti, saudoso Pai, eu a estendo a todos ao Pais que, morrendo, se tornaram claridade, pelas suas ações e pelos seus exemplos.
É verdade, meu Pai, que os mortos governam os vivos “. E os que foram bons na terra, continuam sendo-o na eternidade, de onde enviam presentes aos vivos . . . Pelas noites nos meus exames de consciência, toda alegria que sinto, por uma boa ação que me ensinaste a praticar, é uma flor celeste que do alto me atiras dentro do coração.
sábado, 28 de fevereiro de 2009
Gonçalves da Costa
Comentário
Mais uma bela página enriquece esta coluna e homenageia Gonçalves da Costa, um dos grandes intelectuais de Minas Gerais.
Zebedeu e Bertoldo, personagens do poeta.
Zebedeu, provavelmente, inspirando-se no pescador, pai dos apóstolos São Tiago e São João Evangelista e marido de Salomé. Êmulos de Damão e Pítias, filósofos pitagóricos do tempo de Dionisio o Moço, célebres pela amizade que os unia. Tendo Pítias, condenado à morte, pedido ao tirano que lhe concedesse algum tempo para arranjar os seus negócios, ofereceu-se Damão para morrer em lugar do seu amigo, se este não estivesse de volta no momento fixado. Chegou a hora do suplício e Damão ia ser executado quando Pítias se apresentou. Dionisio comovido de tamanha dedicação pordoou ao condenado e pediu, mas em vão, aos dois filósofos, que o admitissem como terceiro na sua amizade.
Pílades, na mitologia grega, herói da Fócida. Primo amigo e conselheiro de Orestes, ajudou-o a punir os assassinos de Agamenon. Esposou Electra, irmã de Orestes, com quem teve dois filhos, Médon e Estrófio.
Pílades e Orestes inspiraram o genial Machado de Assis, na criação de Quintanilha e Gonçalves, um conto que por Ítalo Moriconi foi selecionado como um dos cem melhores contos brasileiros do século 20.
Uma rainha de Sabá, célebre por seu fausto, chamada Balkis, foi visitar Salomão, atraída pela fama da sua Sabedoria.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 000 – Raul Soares (MG)
HARPA SEM CORDAS
Vamos por aqui, Zebedeu. As areias desta rua guardam cantigas de sol. Como você sabe, nosso espírito sempre mergulhou em cantigas, e em nós ainda ressoam aquelas que, em nossa infância, eram chofradas pelo velho Bertoldo e sua viola cheia de remendos.
Siga-nos juntos por esta rua. Somos companheiros inseparáveis. Pouco importa que os curiosos se belisquem fortuitamente e murmurem que somos Damão e Pitias ou Pilades e Orestes. No nosso firmamento interior há somente dias de sol e noites de lua.
Você não concorda comigo, Zebedeu? Você não responde? Assalta-o, por ocaso, a aflição de astro em declínio? Não ! Não é possível ! A rua se estende diante de nós, ladeada de flores, povoada de belezas jovens, rodeada de convites para uma realidade que deslumbra. . . Não nos detenhamos, meu amigo ! Sigamos como se, coroados de aurora, estivéssemos andando sobre a face nua do Mediterrâneo. . .
Agora, por aqui, parecem que andam eflúvios mágicos. Parece que fios invisíveis nos puxam para traz. Já ouço a cantiga dos pássaros da infância, sinto as preces imaculadas da infância. Vislumbro os avanços para as estrelas, enquanto as mãos colhiam vácuo, nos crepúsculos verdes da mocidade . . . Mas, não podemos, nem devemos voltar, meu caro Zebedeu. Olhemos a viração, as crianças, a mole humana . . . Vultos femininos perpassam, sorrindo argumentos que anulam teorias pessimistas, e suas vozes encantadas arrancam vegetação das pedras . . . Noto que estou falando sozinho Zebedeu. Você não diz nada . . . Desembuche, homem! Aprume-se agora, e estremeça diante dessa flor humana que está roçando seu ombro ! Uma beleza fantástica ! Céus ! É a lendária Rainha de Sabá, a que anda sobre os outeiros nos Cantares do grande Rei Poeta ! Entôo-lhe também um cântico, Zebedeu. Deixo para você a oportunidade tão peregrina figura deve ser conduzida sob um pálio de harmonias ! E ela se afasta, repare, sem ter ouvido uma saudação lírica. É uma nave que se distancia, levando as últimas esperanças . . .
Cuidado, Zebedeu, que por esta rua, crivada de encantamentos também erram cães vadios . . Ah ! Eu não disse ! Um grande cão azul, agora, avança caladamente, e deixa um grande sulco na suas perna ! . . . Um pedaço de você vai se afastando, preso entre aqueles dentes enormes ! Que horror ! Mas . . . o seu sangue não escorre, Zebedeu ! E você não geme, não grita, não reclama ! Por que ? Você sempre se transfigurava de alegria ou de ódio, e a sua face agora parece de mármore ! . . . Seus olhos não fitam este mundo ! . . . Seu corpo tem um feitio de múmia ! . . . Jesus ! Eu vinha acompanhado de um defunto ambulante ! Eu vinha conversando com um homem morto ! . . .
Mais uma bela página enriquece esta coluna e homenageia Gonçalves da Costa, um dos grandes intelectuais de Minas Gerais.
Zebedeu e Bertoldo, personagens do poeta.
Zebedeu, provavelmente, inspirando-se no pescador, pai dos apóstolos São Tiago e São João Evangelista e marido de Salomé. Êmulos de Damão e Pítias, filósofos pitagóricos do tempo de Dionisio o Moço, célebres pela amizade que os unia. Tendo Pítias, condenado à morte, pedido ao tirano que lhe concedesse algum tempo para arranjar os seus negócios, ofereceu-se Damão para morrer em lugar do seu amigo, se este não estivesse de volta no momento fixado. Chegou a hora do suplício e Damão ia ser executado quando Pítias se apresentou. Dionisio comovido de tamanha dedicação pordoou ao condenado e pediu, mas em vão, aos dois filósofos, que o admitissem como terceiro na sua amizade.
Pílades, na mitologia grega, herói da Fócida. Primo amigo e conselheiro de Orestes, ajudou-o a punir os assassinos de Agamenon. Esposou Electra, irmã de Orestes, com quem teve dois filhos, Médon e Estrófio.
Pílades e Orestes inspiraram o genial Machado de Assis, na criação de Quintanilha e Gonçalves, um conto que por Ítalo Moriconi foi selecionado como um dos cem melhores contos brasileiros do século 20.
Uma rainha de Sabá, célebre por seu fausto, chamada Balkis, foi visitar Salomão, atraída pela fama da sua Sabedoria.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha – 64
35350 000 – Raul Soares (MG)
HARPA SEM CORDAS
Vamos por aqui, Zebedeu. As areias desta rua guardam cantigas de sol. Como você sabe, nosso espírito sempre mergulhou em cantigas, e em nós ainda ressoam aquelas que, em nossa infância, eram chofradas pelo velho Bertoldo e sua viola cheia de remendos.
Siga-nos juntos por esta rua. Somos companheiros inseparáveis. Pouco importa que os curiosos se belisquem fortuitamente e murmurem que somos Damão e Pitias ou Pilades e Orestes. No nosso firmamento interior há somente dias de sol e noites de lua.
Você não concorda comigo, Zebedeu? Você não responde? Assalta-o, por ocaso, a aflição de astro em declínio? Não ! Não é possível ! A rua se estende diante de nós, ladeada de flores, povoada de belezas jovens, rodeada de convites para uma realidade que deslumbra. . . Não nos detenhamos, meu amigo ! Sigamos como se, coroados de aurora, estivéssemos andando sobre a face nua do Mediterrâneo. . .
Agora, por aqui, parecem que andam eflúvios mágicos. Parece que fios invisíveis nos puxam para traz. Já ouço a cantiga dos pássaros da infância, sinto as preces imaculadas da infância. Vislumbro os avanços para as estrelas, enquanto as mãos colhiam vácuo, nos crepúsculos verdes da mocidade . . . Mas, não podemos, nem devemos voltar, meu caro Zebedeu. Olhemos a viração, as crianças, a mole humana . . . Vultos femininos perpassam, sorrindo argumentos que anulam teorias pessimistas, e suas vozes encantadas arrancam vegetação das pedras . . . Noto que estou falando sozinho Zebedeu. Você não diz nada . . . Desembuche, homem! Aprume-se agora, e estremeça diante dessa flor humana que está roçando seu ombro ! Uma beleza fantástica ! Céus ! É a lendária Rainha de Sabá, a que anda sobre os outeiros nos Cantares do grande Rei Poeta ! Entôo-lhe também um cântico, Zebedeu. Deixo para você a oportunidade tão peregrina figura deve ser conduzida sob um pálio de harmonias ! E ela se afasta, repare, sem ter ouvido uma saudação lírica. É uma nave que se distancia, levando as últimas esperanças . . .
Cuidado, Zebedeu, que por esta rua, crivada de encantamentos também erram cães vadios . . Ah ! Eu não disse ! Um grande cão azul, agora, avança caladamente, e deixa um grande sulco na suas perna ! . . . Um pedaço de você vai se afastando, preso entre aqueles dentes enormes ! Que horror ! Mas . . . o seu sangue não escorre, Zebedeu ! E você não geme, não grita, não reclama ! Por que ? Você sempre se transfigurava de alegria ou de ódio, e a sua face agora parece de mármore ! . . . Seus olhos não fitam este mundo ! . . . Seu corpo tem um feitio de múmia ! . . . Jesus ! Eu vinha acompanhado de um defunto ambulante ! Eu vinha conversando com um homem morto ! . . .
sábado, 14 de fevereiro de 2009
Gonçalves da Costa
Comentário
O poeta intitulou “Harpa sem Cordas” varias páginas de muita inspiração e valor intelectual. Com o sub - título “TABOR” é a página que estamos inserindo na coluna de hoje.
TABOR é uma montanha da Síria, na Palestina Setentrional. É lá que o Novo Testamento coloca a Transfiguração de Cristo.
Saladino, referido pelo poeta, sultão do Egito e da Síria, o herói muçulmano da terceira Cruzada (1137-1193).
Santo Graal, nas crenças da Idade-Média, vaso de esmeralda que teria servido a Jesus Cristo, para a ceia com os seus discípulos, e em que José de Arimatéia teria recolhido o sangue que o centurião fez correr do flanco de Jesus sacrificado. Wagner fez do Graal o assunto de sua ópera Parsifal.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha -64
35350 000 - Raul Soares (MG)
TABOR
O estranho Leproso, arquejante, extraordinário, atingiu o alto da colina. Sangue nos pés disformes, sangue nas mãos lanhadas, sangue na face ferida. Sob as vestes ensebadas e rotas, o corpo estrelado de chagas. A vista, mesmo turbada, embebeu-se na grande paisagem . . .“Estarei no céu? Estarei mesmo na terra ? “ - murmurou, e tentou erguer um cântico. A carne se tornou sobre - humana, e dos seus lábios começou a elevar-se o cântico do espírito . . . Das chagas do seu peito , então, se levantou uma flor majestosa, que lhe colocou sobre a cabeça um céu de pétalas. Ao longe do imenso vale se desenharam caminhos, que, vindo das distâncias, morriam junto ao sangue dos seus pés.
Caminhos de músicas, estradas de flores, roteiros resplandecentes. . .Ao longo deles perpassavam belezas virgens, de vestes alvas - rainhas egressas de outros reinos . . . Os olhos do estranho Leproso se afundaram em maravilhas. Descerem aves brancas, trazendo no bico um misterioso ungüento para as chagas vivas, as quais, sendo tocadas, refulgiam. Como se mostravam largos os horizonte, abrindo-se num convite para os grandes vôos ! Além, muito além, as miragens eram caravanas que se arrastavam, rumo à Meca desconhecida, Os cavalheiros do Santo Graal, os guerreiros de Salladino, passavam cintilando nas planícies eternas, rápidos, perseguindo relâmpagos. . .
Todas as visões consoladoras, inefáveis, que haviam povoado as suas noites de solidão e de tormento, ressurgiam agora, em anseios de definição, como criaturas talhadas em pedra, como mármores estuantes de vida. Maravilhas se desandavam ante os seus olhos, deixando rolar as vestes sobre os espinhos e os abismos.
Os olhos do grande Leproso se encheram então de um brilho novo, as suas chagas se transformaram em rosas de luz e ele se cobriu todo de uma beleza inenarrável. Eis que surge à sua frente, vestida de branco, asas nos ombros, a Esperada . . . Defrontam-se dois sorrisos. As mãos rútilas se estendem . . . Dois vultos se tocam e, ante os espaços atônitos, vão eles
entrelaçados - clarões de exércitos em marcha, dois hinos de glória, duas alvoradas angélicas.
O poeta intitulou “Harpa sem Cordas” varias páginas de muita inspiração e valor intelectual. Com o sub - título “TABOR” é a página que estamos inserindo na coluna de hoje.
TABOR é uma montanha da Síria, na Palestina Setentrional. É lá que o Novo Testamento coloca a Transfiguração de Cristo.
Saladino, referido pelo poeta, sultão do Egito e da Síria, o herói muçulmano da terceira Cruzada (1137-1193).
Santo Graal, nas crenças da Idade-Média, vaso de esmeralda que teria servido a Jesus Cristo, para a ceia com os seus discípulos, e em que José de Arimatéia teria recolhido o sangue que o centurião fez correr do flanco de Jesus sacrificado. Wagner fez do Graal o assunto de sua ópera Parsifal.
José Geraldo Leal
Rua Rufino Rocha -64
35350 000 - Raul Soares (MG)
TABOR
O estranho Leproso, arquejante, extraordinário, atingiu o alto da colina. Sangue nos pés disformes, sangue nas mãos lanhadas, sangue na face ferida. Sob as vestes ensebadas e rotas, o corpo estrelado de chagas. A vista, mesmo turbada, embebeu-se na grande paisagem . . .“Estarei no céu? Estarei mesmo na terra ? “ - murmurou, e tentou erguer um cântico. A carne se tornou sobre - humana, e dos seus lábios começou a elevar-se o cântico do espírito . . . Das chagas do seu peito , então, se levantou uma flor majestosa, que lhe colocou sobre a cabeça um céu de pétalas. Ao longe do imenso vale se desenharam caminhos, que, vindo das distâncias, morriam junto ao sangue dos seus pés.
Caminhos de músicas, estradas de flores, roteiros resplandecentes. . .Ao longo deles perpassavam belezas virgens, de vestes alvas - rainhas egressas de outros reinos . . . Os olhos do estranho Leproso se afundaram em maravilhas. Descerem aves brancas, trazendo no bico um misterioso ungüento para as chagas vivas, as quais, sendo tocadas, refulgiam. Como se mostravam largos os horizonte, abrindo-se num convite para os grandes vôos ! Além, muito além, as miragens eram caravanas que se arrastavam, rumo à Meca desconhecida, Os cavalheiros do Santo Graal, os guerreiros de Salladino, passavam cintilando nas planícies eternas, rápidos, perseguindo relâmpagos. . .
Todas as visões consoladoras, inefáveis, que haviam povoado as suas noites de solidão e de tormento, ressurgiam agora, em anseios de definição, como criaturas talhadas em pedra, como mármores estuantes de vida. Maravilhas se desandavam ante os seus olhos, deixando rolar as vestes sobre os espinhos e os abismos.
Os olhos do grande Leproso se encheram então de um brilho novo, as suas chagas se transformaram em rosas de luz e ele se cobriu todo de uma beleza inenarrável. Eis que surge à sua frente, vestida de branco, asas nos ombros, a Esperada . . . Defrontam-se dois sorrisos. As mãos rútilas se estendem . . . Dois vultos se tocam e, ante os espaços atônitos, vão eles
entrelaçados - clarões de exércitos em marcha, dois hinos de glória, duas alvoradas angélicas.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
HARPA SEM CORDAS
(Pinceladas quase autobiográficas de um desconhecido)
(Ao fluente cronista que se assina ADAMASTOR com a minha admiração)
(Gonçalves da Costa)
Desde que, em criança abolí o uso de camisolas e aprendi a cortar as unhas com tesoura, sempre fui um sujeito cem por cento legal. Comedido, simétrico. Em nada parecido com areia de fundo de rio. Exemplifico. Ao tossir, sempre procurei fazê-lo no mesmo diapasão, com equilibrio, procurando evitar aquele regougo estridente, escandalizante, que certos velhos asmáticos reservam infalivelmente como remate a um acesso de tosse. E no andar, quantas e quantas vezes pisei numa poça d’água, ou num prego, para não dar um passo mais curto ou mais avantajado que os outros.
Certo dia, porém, numa delegacia de polícia qualquer, não sei onde nem quando, fui tomar por termo o depoimento de um cabo de polícia. Vi logo que se tratava de um militar genuinamente louco. E qualquer pessoa, mesmo desconhecedora das páginas do Dr. Neves Manta sobre o alcoolismo, ao sentir o bafo do homenzinho concluiria logo que ele estava bêbado.
Presenciara ele, na véspera, quando um homem estrangulara a esposa, apenas porque esta, num momento de distração, tinha esmagado com o pé esquerdo um sapo criado em casa. O depoimento foi um rio de disparates, que fui canalizando para o papel. Mentiras deslavadas. Disse que o assassino, por falta de arma adequada, arrancara o próprio coração, desferindo com ele uma pancada fulminante na vítima, pormenorizando ainda que o Embaixador do Japão se acha presente e que assistira tudo, impassível, como que numa convivência tácita, fabricando canoinhas de papel.
A certa altura o militar interrompeu-se, e começou a sacudir violentamente a cabeça. Notando a minha estupefação, explicou estar tentando desprender, de um cantinho da lembrança, uma circunstância agravante do crime que lá se achava presa num cipoal . . . Arrogando autoridade, eu disse, com voz grossa, que o depoimento estava completo, tomando o depoente, então, a sua posição anterior, vertical e mais ou menos imóvel.
Vendo que não convinha dizer mais nada, ele se apressou em assinar o papel, como a estampar um sinete em suas mentiras, para o que me arrebatou das mãos a minha caneta “Parker”, novinha em folha. Com um punho que rivalizava um monte de chumbo, escreveu em letras enormes - “José Patrício”, e, desastradamente, como completivo, tentou dar um traço horizontal abaixo do nome. Catástrofe ! Ao fazê-lo quebrou a pena e rasgou o papel, depois do que, resplandescente, olhando para a caneta mutilada, bradou, num tom que era um grito de vitória : “Desconfia, seriema ! “.
A maneira como o militar depôs, o fato de confundir ele a caneta com uma ave pernalta, e ainda em vista dos passos de frevo que saiu praticando, ao afastar-se, mesmo sem música, tudo aquilo me avassalou o espírito, entusiasmando-me, a ponto de não deixar pedra sobre pedra . . . Numa fração de segundo me vi despido dos meus hábitos antigos, das minhas decisões retilíneas, do meu antigo eu, afinal. Imediatamente, com mãos ofegantes, procurei todos os meus dicionários, até os escritos em aramaico, e deles arranquei as folhas que continham as palavras - lógica, elaboração, raciocínio, dedução etc. E os livros “Lógica”, de Condillac, “Lógica”, de Balames, e vários outros, dei-os ao primeiro vendedor de pirulitos que passou na estrada. Retirei do bolso a carteira de identidade, na qual mudei a data do meu nascimento para o Natal de 1870. Tanto bastou para que logo me visse ao lado de D. Pedro II, nas matas da Tijuca, munido de uma espingarda descomunal, caçando trocazes. Sua Majestade procurava então curar-se de uma dor de cabeça causada por um de seus ministros, o mais gordo. De mal humorado que se achava, súbito o Imperador deu uma gargalhada, apenas por ter, com um tiro balofo, abatido nove trocazes luminosas. Foi então que o meu ilustre companheiro de caçada, apoiando uma folha de papel nas minhas costas, escreveu o verso – “Não maldigo o rigor da iníqua sorte “, reservando o resto do soneto para escrever mais tarde, depois que se verificassem sérios acontecimentos políticos no País. Despendido-me de sua Majestade, que salomônicamente partiu ao meio o produto da caçada e me entregou a minha parte (Salomão não chegou a partir ao meio a criança), sai andando no tempo, passando pela Serra dos Órgãos e pelo Pico do Caparaó, e, já nas terras de Minas, graças a minha proverbial indiscrição, consegui evitar uma catástrofe de resultados imprevisíveis . É que, aproximando-me sem ser visto, e dando um grito vulcânico, evitei que um grande chefe de Estado atirasse carne picada aos seus canários numa quarta feira de cinzas.
Tornei-me um cavaleiro andante. Não de vistas estreitas como o Dom Quixote de Cervantes. Uma individualidade consentânea com a época. Que disse eu ? Época ? Penitencio-me. Época para mim, é uma entidade que nem mesmo em abstrato existe. Às vezes fico ao lado da estrada, cheio de fé e de esperança, esperando a passagem do já citado Rei Salomão, ou de Napoleão, ou de Alcebíades, o que mandou cortar a cauda do seu cão de estimação, que latia fazendo “ão, ão, ão”. E se vejo uma fogueira, atiro-me logo a ela, e vou procurar entre as brasas a carne tostada de Giorando Bruno, ou de Joana Dárc, ou do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, o qual, ao que tudo indica, não teve outra sorte . . .
Até logo ventos do meio dia. Deixo-os em paz, agora, porque estou escrevendo de pé, debaixo da ponte, e porque o relógio que tomei com café pela manhã está dando horas no meu estômago. Vou procurar para o meu almoço uns gafanhotos, como fazia João Batista,o santo Precursor, que conversava coisas divinas com o futuro e cuja cabeça mais tarde foi vista dentro de um prato.
(Ao fluente cronista que se assina ADAMASTOR com a minha admiração)
(Gonçalves da Costa)
Desde que, em criança abolí o uso de camisolas e aprendi a cortar as unhas com tesoura, sempre fui um sujeito cem por cento legal. Comedido, simétrico. Em nada parecido com areia de fundo de rio. Exemplifico. Ao tossir, sempre procurei fazê-lo no mesmo diapasão, com equilibrio, procurando evitar aquele regougo estridente, escandalizante, que certos velhos asmáticos reservam infalivelmente como remate a um acesso de tosse. E no andar, quantas e quantas vezes pisei numa poça d’água, ou num prego, para não dar um passo mais curto ou mais avantajado que os outros.
Certo dia, porém, numa delegacia de polícia qualquer, não sei onde nem quando, fui tomar por termo o depoimento de um cabo de polícia. Vi logo que se tratava de um militar genuinamente louco. E qualquer pessoa, mesmo desconhecedora das páginas do Dr. Neves Manta sobre o alcoolismo, ao sentir o bafo do homenzinho concluiria logo que ele estava bêbado.
Presenciara ele, na véspera, quando um homem estrangulara a esposa, apenas porque esta, num momento de distração, tinha esmagado com o pé esquerdo um sapo criado em casa. O depoimento foi um rio de disparates, que fui canalizando para o papel. Mentiras deslavadas. Disse que o assassino, por falta de arma adequada, arrancara o próprio coração, desferindo com ele uma pancada fulminante na vítima, pormenorizando ainda que o Embaixador do Japão se acha presente e que assistira tudo, impassível, como que numa convivência tácita, fabricando canoinhas de papel.
A certa altura o militar interrompeu-se, e começou a sacudir violentamente a cabeça. Notando a minha estupefação, explicou estar tentando desprender, de um cantinho da lembrança, uma circunstância agravante do crime que lá se achava presa num cipoal . . . Arrogando autoridade, eu disse, com voz grossa, que o depoimento estava completo, tomando o depoente, então, a sua posição anterior, vertical e mais ou menos imóvel.
Vendo que não convinha dizer mais nada, ele se apressou em assinar o papel, como a estampar um sinete em suas mentiras, para o que me arrebatou das mãos a minha caneta “Parker”, novinha em folha. Com um punho que rivalizava um monte de chumbo, escreveu em letras enormes - “José Patrício”, e, desastradamente, como completivo, tentou dar um traço horizontal abaixo do nome. Catástrofe ! Ao fazê-lo quebrou a pena e rasgou o papel, depois do que, resplandescente, olhando para a caneta mutilada, bradou, num tom que era um grito de vitória : “Desconfia, seriema ! “.
A maneira como o militar depôs, o fato de confundir ele a caneta com uma ave pernalta, e ainda em vista dos passos de frevo que saiu praticando, ao afastar-se, mesmo sem música, tudo aquilo me avassalou o espírito, entusiasmando-me, a ponto de não deixar pedra sobre pedra . . . Numa fração de segundo me vi despido dos meus hábitos antigos, das minhas decisões retilíneas, do meu antigo eu, afinal. Imediatamente, com mãos ofegantes, procurei todos os meus dicionários, até os escritos em aramaico, e deles arranquei as folhas que continham as palavras - lógica, elaboração, raciocínio, dedução etc. E os livros “Lógica”, de Condillac, “Lógica”, de Balames, e vários outros, dei-os ao primeiro vendedor de pirulitos que passou na estrada. Retirei do bolso a carteira de identidade, na qual mudei a data do meu nascimento para o Natal de 1870. Tanto bastou para que logo me visse ao lado de D. Pedro II, nas matas da Tijuca, munido de uma espingarda descomunal, caçando trocazes. Sua Majestade procurava então curar-se de uma dor de cabeça causada por um de seus ministros, o mais gordo. De mal humorado que se achava, súbito o Imperador deu uma gargalhada, apenas por ter, com um tiro balofo, abatido nove trocazes luminosas. Foi então que o meu ilustre companheiro de caçada, apoiando uma folha de papel nas minhas costas, escreveu o verso – “Não maldigo o rigor da iníqua sorte “, reservando o resto do soneto para escrever mais tarde, depois que se verificassem sérios acontecimentos políticos no País. Despendido-me de sua Majestade, que salomônicamente partiu ao meio o produto da caçada e me entregou a minha parte (Salomão não chegou a partir ao meio a criança), sai andando no tempo, passando pela Serra dos Órgãos e pelo Pico do Caparaó, e, já nas terras de Minas, graças a minha proverbial indiscrição, consegui evitar uma catástrofe de resultados imprevisíveis . É que, aproximando-me sem ser visto, e dando um grito vulcânico, evitei que um grande chefe de Estado atirasse carne picada aos seus canários numa quarta feira de cinzas.
Tornei-me um cavaleiro andante. Não de vistas estreitas como o Dom Quixote de Cervantes. Uma individualidade consentânea com a época. Que disse eu ? Época ? Penitencio-me. Época para mim, é uma entidade que nem mesmo em abstrato existe. Às vezes fico ao lado da estrada, cheio de fé e de esperança, esperando a passagem do já citado Rei Salomão, ou de Napoleão, ou de Alcebíades, o que mandou cortar a cauda do seu cão de estimação, que latia fazendo “ão, ão, ão”. E se vejo uma fogueira, atiro-me logo a ela, e vou procurar entre as brasas a carne tostada de Giorando Bruno, ou de Joana Dárc, ou do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, o qual, ao que tudo indica, não teve outra sorte . . .
Até logo ventos do meio dia. Deixo-os em paz, agora, porque estou escrevendo de pé, debaixo da ponte, e porque o relógio que tomei com café pela manhã está dando horas no meu estômago. Vou procurar para o meu almoço uns gafanhotos, como fazia João Batista,o santo Precursor, que conversava coisas divinas com o futuro e cuja cabeça mais tarde foi vista dentro de um prato.
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